domingo, 28 de março de 2004

As grandes muralhas cósmicas


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

No final dos anos 70, avanços na tecnologia de telescópios e processamento de dados permitiram que astrônomos fizessem com o Universo o que exploradores dos séculos 15 e 16 fizeram com a Terra: criar mapas para explorar terras longínquas. Claro, no caso do Universo, a exploração tem de ser feita indiretamente, pelo menos até que sejam inventadas caravelas cósmicas.
Se isso é uma desvantagem em relação a Cabral e seus amigos, temos também uma grande vantagem: ao contrário de pontos distantes na superfície da Terra, os pontos distantes do Universo, as galáxias, emitem luz que chega até nossos telescópios. Portanto, podemos explorá-las sem ter de ir a elas: elas vêm a nós.

Os mapas do Universo, ou mapas da estrutura de larga escala, são construídos medindo a posição de milhares de galáxias, situadas a distâncias que chegam a bilhões de anos-luz. Ou seja, a luz que chega aos nossos telescópios hoje saiu dessas galáxias antes da origem da Terra, há cerca de 4,5 bilhões de anos.

O mapeamento tridimensional do Universo começou para valer com o projeto liderado pelos astrônomos americanos Margaret J. Geller e John P. Huchra e pela francesa Valérie de Lapparent, do Centro de Astrofísica Harvard-Smithsonian (CfA). Em 1986, eles publicaram um mapa contendo a posição de 1.100 galáxias, parte de um levantamento que obteve a posição de 18 mil galáxias. Para visualizar o mapa, imagine as galáxias como pontos de luz, espalhados em torno da Terra em todas as direções.

Na verdade, mapas de galáxias são limitados a pequenas "fatias do céu", já que obter a posição de galáxias em todas as direções tomaria um tempo absurdo, especialmente em 1986. Os resultados do grupo do CfA foram surpreendentes. Ao contrário da expectativa geral, a de que galáxias estariam distribuídas aleatoriamente pelo espaço, o mapa mostrou que elas se agrupam em estruturas complexas, em torno de bolhas (chamados vazios cósmicos) e filamentos, alguns deles com centenas de milhões de anos-luz de extensão. Essas estruturas ficaram conhecidas como "muralhas cósmicas".

A maior delas, a "Grande Muralha", chegava a ter 700 milhões de anos-luz de extensão. Ela atravessava o mapa de ponta a ponta.

Isso criou um grande problema. O princípio mais fundamental da cosmologia, conhecido como Princípio Cosmológico, afirma que, em média, o Universo é o mesmo em qualquer lugar ou em qualquer direção. Claro, existem agrupamentos locais onde um número maior de galáxias e seus aglomerados são encontrados. Mas, a grandes distâncias, o Universo tem de ter a mesma cara. Feito um campo de futebol. Perto da grama, dá para ver buracos ou locais onde a grama está mais longa. Mas, de uma distância de cem metros, em média a grama parece ser toda igual, homogênea.

Uma muralha com extensão de 700 milhões de anos-luz parece contradizer o Princípio Cosmológico, como se o gramado fosse atravessado de ponta a ponta por um buraco de um metro de largura. Será que os fundamentos da cosmologia têm de ser revisados? Apenas mapas maiores poderiam resolver a questão.

Entre 1988 e 1994, um mapa contendo 26.418 galáxias foi produzido por Stephen Shectman, do Instituto Carnegie em Washington. Usando o telescópio de 2,5 metros do Observatório de Las Campañas, no Chile, Shectman pôde explorar distâncias bem maiores do que o time do CfA. Resultado: a Grande Muralha parecia ser a maior estrutura existente. Ou seja, o Universo aparentava ser homogêneo em escalas maiores do que centenas de milhões de anos-luz, e o Princípio Cosmológico permanecia válido. Mas o mapa ainda não era grande o suficiente para ser conclusivo. E se existissem estruturas com bilhões de anos-luz?

Dois grande projetos resolveram a questão. Fibras ópticas e computadores obtêm automaticamente a posição de centenas de galáxias por noite. Um grupo da Austrália e do Reino Unido mapeou 221.414 galáxias em 5 anos. Outro, o Levantamento Celeste Digital Sloan, mapeará 1 milhão de galáxias e já está na metade. Os mapas obtidos contêm muralhas com até 1 bilhão de anos-luz de extensão. Mas o Universo visível tem 14 bilhões de anos-luz. O campo é meio esburacado, mas ainda dá para jogar.

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