domingo, 26 de março de 2006

Cicatrizes profundas


Semana passada, visitei a cratera de Barringer, no Estado americano do Arizona, uma das poucas ainda visíveis na superfície da Terra. Existem outras, em torno de 150, espalhadas pelo planeta. Mas, em sua maioria, estão submersas ou são hoje lagos. Essa cratera é única pois tem mesmo cara de cratera.


Vejo na trágica história dessas crianças um outro tipo de cicatriz profunda, causada por nós mesmos


Nunca havia ido lá, ou mesmo visto uma cratera de perto -só as que podem ser observadas com um par de binóculos, pipocando a superfície da Lua. Perdida em meio ao deserto, a cratera é uma lembrança fascinante de que somos parte de um cosmo dinâmico, animado pelas forças gravitacionais entre seus vários corpos. Nos lembra também de como somos pequenos diante da incrível violência dos eventos que ocorrem em nossa vizinhança celeste.

A cratera é bem recente, ao menos em termos geológicos: foi formada há 50 mil anos, quando um meteorito de cerca de 50 metros de diâmetro -o equivalente a um prédio de 15 andares feito praticamente de ferro puro- chocou-se com o solo a uma velocidade de 40 mil quilômetros por hora. A energia do impacto foi equivalente à detonação simultânea de 20 bombas de hidrogênio. Nada num raio de 20 quilômetros sobreviveu. Na época, a região era habitada por mamutes e tigres-dente-de-sabre. A cicatriz desse encontro violento é a cratera, que hoje tem 2 quilômetros de extensão (equivalente a 20 campos de futebol) e 200 metros de profundidade.
Se um meteorito desses caísse sobre uma cidade, o efeito seria devastador. Milhões morreriam.
Felizmente, colisões como essa são muito raras. Tanto assim que não temos registro de nada parecido nos últimos 4 mil anos. Fora, claro, o famoso evento de Tunguska, na Sibéria. Em 1908, o que se acredita ter sido um fragmento de um cometa ou asteróide explodiu a uma altitude de 2 quilômetros sobre a floresta, devastando cerca de 20 mil quilômetros quadrados dela. Ondas de choque foram sentidas por toda a Europa.

Não escrevo sobre essas colisões para assustar. Gostaria apenas que o leitor refletisse sobre a realidade cósmica em que vivemos. E também sobre a que está bem mais próxima. É muito fácil, na correria de nossas vidas, esquecermos de que somos parte dessa dança de criação e destruição que permeia o Universo. E de que ela não se relega aos céus. Parte dela está em nossas mãos. Penso no documentário pioneiro exibido recentemente no programa "Fantástico" sobre as crianças das favelas e o tráfico de drogas. Elas nunca terão chance de olhar para a Lua com um binóculo ou aprender sobre nosso lugar no cosmo. Também não têm tempo de ter medo de meteoritos vindos dos céus. Vejo na trágica história dessas crianças um outro tipo de cicatriz profunda, causada por nós mesmos naqueles que não têm como se defender da violência que os aflige. A diferença é que essa cicatriz continua aberta e sangrando.

Tenho certeza de que essas crianças adorariam aprender sobre os céus; de que fazem pedidos para estrelas cadentes; de que se perguntam se existem outros seres vivos no Universo e se a injustiça lá é como a de cá. É muito difícil, com a tecnologia atual, detectar asteróides pequenos como os que causaram a cratera de Barringer ou a devastação na Sibéria. Se um deles estiver em rota de colisão, será difícil evitar o impacto. Mas a favela fica bem mais próxima. E a vida lá é tão preciosa quanto fora dela. Um meteorito não sabe disso. Mas nós sabemos.

Um comentário:

  1. Já há um bom tempo divulgo esse texto a meus alunos. Ele é maravilhoso pela estilística de um artigo de opinião e excepcional pela abordagem. Marcelo Gleiser prova ser além de excelente físico, extraordinário escritor, haja vista sua preciosas obras.
    Jocemara

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