domingo, 24 de abril de 2005

Galileu e a igreja

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Apesar de João Paulo 2º ter sido considerado linha-dura em suas posições com relação a aborto, métodos anticoncepcionais e papel das mulheres na igreja, durante seus primeiros anos como papa demonstrou grande coragem ao visitar a Polônia comunista, plantando sementes que contribuíram para a queda do regime lá e em outros países da Cortina de Ferro.


O episódio parece indicar que a igreja foi intransigente. Na verdade, a história foi diferente


Outro ato de importância, ao menos simbólica, foi ter criado uma comissão para rever o caso Galileu, o famoso cientista que, em 1633, foi condenado pela Inquisição a prisão domiciliar por defender o sistema de Copérnico, no qual o Sol era o centro do cosmo. Em 1982, João Paulo 2º discursou sobre a necessidade de um estudo mais profundo dos eventos, "para remover as barreiras que possam obstruir uma relação frutífera entre ciência e fé". Em 1992, passados 359 anos, João Paulo finalmente revogou a condenação de Galileu pela igreja. Um excelente exemplo de "antes tarde do que nunca".

O "episódio Galileu" parece indicar que a igreja foi retrógrada e intransigente ao negar as descobertas do cientista. Na verdade, a história foi diferente. A atitude de Galileu, sua arrogância, teve papel-chave no decorrer dos eventos.

O livro no qual Copérnico propôs que a Terra é apenas um planeta girando em torno do Sol foi publicado em 1543. Naquela altura, a igreja não tinha uma posição definida com relação à posição da Terra. O que existia, devido aos avanços da Reforma Protestante, eram as regras do Concílio de Trento, especificando claramente que a interpretação das escrituras sagradas só poderia ser feita por teólogos sancionados pelo Vaticano.

Já os protestantes não eram tão flexíveis. O próprio Martinho Lutero havia caçoado de Copérnico, dizendo que "parece que um novo astrólogo quer provar que a Terra se move através dos céus (...) O tolo quer virar toda a arte da astronomia do avesso". Foi a entrada de Galileu em cena que forçou a igreja a adotar posição mais rígida.

Em 1610, Galileu apontou seu telescópio aprimorado, capaz de amplificar 20 vezes, para o céu. E o que viu iria modificar a visão de mundo da Renascença, até então dominada por idéias aristotélicas em que a Terra permanecia imóvel no centro do cosmo e os céus e seus astros imutáveis e perfeitos. Galileu viu crateras e montanhas na Lua, luas girando em torno de Júpiter, "orelhas" em Saturno, incontáveis estrelas na Via Láctea, fases em Vênus como na nossa Lua, enfim, coisas que ninguém havia visto antes. Absolutamente brilhante, começou a promulgar idéias antiaristotélicas, contrariando as opiniões de vários cientistas jesuítas, dedicados também aos estudos dos céus.

Em 1615, Galileu escreveu uma carta dizendo que a igreja deveria revisar a interpretação da Bíblia. Em 1616, foi forçado a abandonar suas idéias. Só então o livro de Copérnico foi suspenso. Galileu, convencido de que podia forçar os católicos a mudar de posição, não desistiu. Em 1623, o cardeal Barberini, seu amigo, virou papa. Galileu foi ao ataque e obteve permissão para publicar livro contrastando os dois sistemas.

Só que o livro, escrito como um diálogo, pôs a igreja e sua visão aristotélica no papel do incompetente. Em 1633, Galileu foi forçado pela Inquisição a abdicar suas idéias. Mas era tarde demais. A nova ciência escaparia da Itália, espalhando-se pela Europa. Galileu riu por último. Se tivesse sido mais cuidadoso, talvez pudesse ter rido em 1632 e não em 1992.

Nenhum comentário:

Postar um comentário