domingo, 17 de outubro de 2010

Sobre a importância da ciência



Apenas uma sociedade que que é versada na ciência pode escolher qual vai ser o seu destino de forma responsável


PARECE PARADOXAL QUE, no início deste milênio, durante o que chamamos com orgulho de "era da ciência", tantos ainda acreditem em profecias de fim de mundo. Quem não se lembra do bug do milênio ou da enxurrada de absurdos ditos todos os dias sobre a previsão maia de fim de mundo no ano 2012?

Existe um cinismo cada vez maior com relação à ciência, um senso de que fomos traídos, de que promessas não foram cumpridas. Afinal, lutamos para curar doenças apenas para descobrir outras novas. Criamos tecnologias que pretendem simplificar nossas vidas, mas passamos cada vez mais tempo no trabalho. Pior ainda: tem sempre tanta coisa nova e tentadora no mercado que fica impossível acompanhar o passo da tecnologia.

Os mais jovens se comunicam de modo quase que incompreensível aos mais velhos, com Facebook, Twitter e textos em celulares. Podemos ir à Lua, mas a maior parte da população continua mal nutrida.

Consumimos o planeta com um apetite insaciável, criando uma devastação ecológica sem precedentes. Isso tudo graças à ciência? Ao menos, é assim que pensam os descontentes, mas não é nada disso.

Primeiro, a ciência não promete a redenção humana. Ela simplesmente se ocupa de compreender como funciona a natureza, ela é um corpo de conhecimento sobre o Universo e seus habitantes, vivos ou não, acumulado através de um processo constante de refinamento e testes conhecido como método científico.

A prática da ciência provê um modo de interagir com o mundo, expondo a essência criativa da natureza. Disso, aprendemos que a natureza é transformação, que a vida e a morte são parte de uma cadeia de criação e destruição perpetuada por todo o cosmo, dos átomos às estrelas e à vida. Nossa existência é parte desta transformação constante da matéria, onde todo elo é igualmente importante, do que é criado ao que é destruído.

A ciência pode não oferecer a salvação eterna, mas oferece a possibilidade de vivermos livres do medo irracional do desconhecido. Ao dar ao indivíduo a autonomia de pensar por si mesmo, ela oferece a liberdade da escolha informada. Ao transformar mistério em desafio, a ciência adiciona uma nova dimensão à vida, abrindo a porta para um novo tipo de espiritualidade, livre do dogmatismo das religiões organizadas.

A ciência não diz o que devemos fazer com o conhecimento que acumulamos. Essa decisão é nossa, em geral tomada pelos políticos que elegemos, ao menos numa sociedade democrática. A culpa dos usos mais nefastos da ciência deve ser dividida por toda a sociedade. Inclusive, mas não exclusivamente, pelos cientistas. Afinal, devemos culpar o inventor da pólvora pelas mortes por tiros e explosivos ao longo da história? Ou o inventor do microscópio pelas armas biológicas?

A ciência não contrariou nossas expectativas. Imagine um mundo sem antibióticos, TVs, aviões, carros. As pessoas vivendo no mato, sem os confortos tecnológicos modernos, caçando para comer. Quantos optariam por isso?

A culpa do que fazemos com o planeta é nossa, não da ciência. Apenas uma sociedade versada na ciência pode escolher o seu destino responsavelmente. Nosso futuro depende disso.

10 comentários:

  1. Sou um profundo admirador dos textos do cientista Marcelo Gleiser.

    Entretanto, acho que neste artigo o cientista se equivocou ao aproximar o "bug do milênio" a diversas "profecias de fim de mundo".

    O chamado "bug do milênio" não era uma profecia, mas sim um alerta, com bases científicas, para uma possível sucessão de falhas computacionais provocadas pela alta dependência de máquinas, mais antigas, inadaptadas para a representação da data corrente com maior número de dígitos.

    Conhecia-se muito pouco sobre quais sistemas ainda dependiam dessas máquinas. Muito trabalho de prevenção foi efetuado antes da data fatídica de 31 de dezembro de 1999. Muitos desses trabalhos efetivamente impediram erros. Desconhecia-se a amplitude desses erros em um mundo cada vez mais interconectado.

    Até hoje não temos como avaliar se os trabalhos preventivos impediram uma tragédia, ou se de fato já estávamos suficientemente protegidos.

    Caso a humanidade consiga sobreviver até o ano 9.999, o mesmo problema deverá (poderá?) ocorrer. Desta vez em uma ordem de grandeza muitas vezes maior.

    Eis um bom tema para os autores de ficção científica desenvolverem.

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  2. Mais um excelente texto do professor Marcelo Gleiser.
    São sempre bem vindas manifestações por parte de nós, cientistas, explicando a verdaeira finalidade da ciência, uma vez que boa parte da população leigo tem muitas noções erradas sobre a mesma. Quem é ou já foi da áea de educação sabe muito bem do que falo. E agradeço também ao "Admirador" pelo esclarecimento sobre o bug do milênio. Será de fundamental importância praqueles que lerem este texto.

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  3. "Admirador", conveniente sua colocação, mas creio que Gleiser esteja se referindo à gama de especulações nada científicas que vieram com a história do bug. Da mesma forma com o fim do calendário maia, que é fato, porém traz consigo uma série bobagens catastróficas por parte da imaginação humana.

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  4. Gleiser, concordo em termos, depois de ler realmente o texto, entendi o que você quis passar para os leitores, ou ao menos tentei entender, sim, mas voltando ao assunto o pior de tudo é que provavelmente daqui a algumas décadas o mundo já não vai ser mais o mesmo, provavelmente meus filhos quando forem adultos não vão ver arvores tradicionais, provavelmente até arvores sintéticas ou "geneticamente adulteradas" para absorver raios infra e ultra violetas, ou emanar mais oxigênio, enfim Gleiser, a Ciência realmente é extraordinária, temos que concordar que ela realmente sempre vai tentar compreender a natureza, mas será que quando a ciência compreender a natureza, ainda vai existir alguma natureza como a conhecemos hoje em dia?

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  5. Este artigo pede uma (re)leitura de "Escolha a catástrofe", de Isaac Asimov, sobre quase uma centena de fatalidades que podem ocorrer à humanidade e análises minuciosas de como lidar com elas. Antecipo que, e é uma opinião pessoal, talvez a necessidade de tentar prever o momento final tenha a ver com um instinto de sobrevivência natural da humanidade, ou seja, é difícil permanecer alheio em meio às prováveis iminências.

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  6. Adorei a leitura, tanto do texto de Marcelo Gleiser quanto dos comentários. Dá pra ver que esse blog reúne grandes intelectuais. Eu também quero fazer parte disso. Infelizmente estou sem tempo para organizar meu ponto de vista na altura do que foi exposto aqui, eu precisarei refletir alguns dias sobre o assunto.

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  7. Juro que me senti tocado, orgulhosamente feliz de me sentir um estudante-quase-cientista. E acho que por aí mesmo.

    Um abraço.

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  8. Muito cômodo se isentar da discussão de ética na ciência.

    E a propósito, como eng de software desde a "pré-informáticalascada", digo que o bug do milênio foi o maior golpe de marketing que já vi nos últimas décadas.

    É como o bullshit das lâmpadas econômicas, apenas uma maneira de tirar dinheiro dos outros...

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  9. Me fez lembrar do discurso sobre as ciências e as artes de Jean Jacques Rousseau.

    "... , estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro que eles carregam, sufocam neles o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem-nos amar sua escravidão e formam assim os chamados povos policiados."

    Ótimo texto Gleiser!

    Vida Longa e Próspera

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