domingo, 16 de maio de 1999

Universos múltiplos e chances de formação de vida



A idéia de que o Universo surgiu há 15 bilhões de anos, de uma "singularidade" no espaço e no tempo conhecida como Big Bang, é algo que inquieta não só muitos físicos como também muitos ateus. Afinal, essa misteriosa criação é parecida com o mito judaico-cristão que encontramos no livro do Gênesis, no Antigo Testamento: uma explosão inicial, muita luz etc.

Sem dúvida, existem elementos semelhantes entre essa visão científica da criação e a visão judaico-cristã. Mas as diferenças são mais importantes do que as semelhanças, embora elas não sejam divulgadas com a mesma verve. Para começar, o mito da criação visa estabelecer uma narrativa que define a hierarquia moral necessária na estruturação da religião. Portanto, aprendemos que há um Deus que cria o mundo ex nihilo, a partir do nada, e que a criação envolve a separação de opostos, como luz e trevas. O mito cria uma ponte entre o nosso mundo e a divindade, por uma história possível de entender.

Já a narrativa científica é diferente. Ela não é baseada em uma hierarquia de poder e deve ser acessível a qualquer pessoa versada em suas técnicas, independentemente de sua fé pessoal. Portanto, uma descrição científica sobre a origem do Universo deve ser analisada apenas pelas lentes da ciência e não da religião do cientista ou do público interessado. A linguagem científica atravessa barreiras religiosas, políticas ou sociais.

Mas e o Big Bang? A maioria das popularizações desse modelo cosmológico começa já com um erro fundamental, que acaba por confundir as pessoas. O modelo do Big Bang não tem nada a dizer sobre o momento "inicial"; sua formulação original, baseada na física clássica, deixa de fazer sentido ao nos aproximarmos do t=0, quando temperatura, pressão e densidade da matéria atingem valores absurdamente altos. A tal "singularidade inicial" ocorre quando insistimos em aplicar as leis da física clássica a situações que requerem outro tipo de tratamento, baseado na física quântica, que estuda o mundo atômico e subatômico; o Universo passa a funcionar com outras leis.

Segundo a física quântica, o vazio não existe; sempre haverá pequenas flutuações de energia aqui e ali no espaço, mesmo que, em média, a energia seja zero. Usando a relação E=mc2, essas flutuações de energia dão origem a partículas de matéria que, após uma efêmera existência, voltam a fazer parte do nada de onde vieram. Essa idéia de flutuação de energia pode ser adaptada a todo o Universo; de um nada inicial, em que a energia em média é zero, pequenas flutuações criam inúmeros universos, como bolhas em um caldeirão mágico, que ferve sem fogo. Dessas flutuações, muitas desaparecem imediatamente, outras após algum tempo e outras poucas crescem, tornando-se universos onde a vida pode se desenvolver.

Aplicando a física quântica à cosmologia, transformamos a criação em um processo estatístico, onde um universo como o nosso é apenas um entre "zilhões" de outros possíveis. Um vencedor de uma loteria diria que, sem dúvida, venceu com a ajuda de Deus; já um perdedor diria que as chances são mesmo tão pequenas que é praticamente impossível vencer. Nós vivemos no Universo premiado...

Será que somos mesmo especiais, uma aberração estatística? Sim e não; caso a gravidade fosse um pouco mais forte, o Universo colapsaria sobre si próprio; se muito fraca, ele expandiria tão rapidamente que estruturas complexas, como galáxias, não existiriam. Mas nós estamos aqui, em um Universo capaz de gerar vida, nos perguntando essas coisas. Somos únicos? De acordo com a visão quântica da criação, outras criaturas nesse ou em múltiplos outros universos "premiados" se perguntam a mesma coisa. O mistério passa a ser menos o momento da criação e sim o cálculo da probabilidade de um universo como o nosso ter surgido de uma flutuação energética a partir do nada.

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