domingo, 16 de janeiro de 2000

A recriação da infância do Universo em laboratório

Nem sempre o dito popular "falem mal, mas falem de mim" é bem-vindo. Um exemplo recente diz respeito a um experimento de extrema importância que será realizado no Laboratório Nacional de Brookhaven, no Estado de Nova York, nos EUA. Um acelerador de partículas, com o nome pouco romântico de Colisor Relativístico de Íons Pesados (do inglês RHIC), andou recebendo manchetes em vários jornais e revistas do mundo inteiro.

Em princípio, essa atenção da mídia é de grande relevância para divulgar a ciência ao público não-especializado: como a ciência pura é, em sua maior parte, financiada pelo governo por meio de bolsas tiradas do orçamento da União -que, por sua vez, vem de impostos-, a população tem o direito de saber para onde está indo esse dinheiro. Mais ainda, a ciência faz parte da cultura gerada pela sociedade e deve, portanto, ser apresentada a essa, do mesmo modo que a música, a pintura ou o cinema. Em um brado bem populista, pode-se até dizer que "a ciência vem do povo e é para o povo".

Voltando ao laboratório de Brookhaven, os jornais anunciaram que a máquina lá construída poderia provocar o fim do mundo: o apocalipse causado por nossas próprias mãos, e não por obra divina. O prestigioso jornal britânico "Sunday Times" alertou que "máquina do Big Bang pode destruir a Terra". Claro, várias pessoas ficaram muito preocupadas com essas notícias que, caso fossem verdadeiras, seriam mesmo assustadoras.

Eis então um ótimo exemplo da mídia dando cobertura à ciência de forma histérica e irresponsável. Esse tipo de atenção da mídia só contribui para aumentar ainda mais as suspeitas que as pessoas têm com relação a pesquisas científicas de altas energias.O RHIC é uma máquina capaz de acelerar íons pesados -núcleos de átomos de elementos como o ouro- até velocidades próximas à velocidade da luz. Esses íons são acelerados em sentido contrário e colidem uns com os outros dentro de detectores, usados para estudar os resultados dessas colisões. O acelerador é um anel subterrâneo, com 3,8 km de circunferência, e sua operação conta com mais de 800 físicos e técnicos do mundo inteiro.

A missão do projeto é recriar as condições de energia e temperatura existentes no Universo, centésimos de milésimos de segundos após o Big Bang.A histeria começou na sessão de "Cartas dos Leitores" da revista americana "Scientific American". Alguns leitores levantaram a possibilidade de as colisões entre íons pesados poderem criar um miniburaco negro que imediatamente afundaria até o centro da Terra, devorando-a em minutos. Em astrofísica, buracos negros são os restos mortais de estrelas bem mais maciças do que o Sol.Mas, em princípio, qualquer concentração de matéria, caso ela seja comprimida a altíssimas densidades, pode ser transformada em um buraco negro.

Para converter um ser humano em um buraco negro, basta comprimi-lo em uma bola com o diâmetro de um bilionésimo de um próton! Essa operação requer energias absolutamente impossíveis para nossos laboratórios. O mesmo com íons de ouro.Outra possibilidade levantada foi a formação de objetos exóticos chamados "strangelets", formados por uma combinação de três tipos de quarks: "up", "down" e "strange". Os quarks "up" e "down" formam o próton e o nêutron, sendo, junto ao elétron, as partículas fundamentais da matéria. Há quatro outros tipos de quarks, incluindo o strange, que são criados e destruídos durante colisões de altas energias.

Caso um strangelet de longa vida e carga negativa fosse criado, ele teria o mesmo efeito de um buraco negro. Um grupo de físicos mostrou que strangelets só podem aparecer no interior de estrelas de nêutrons, objetos astrofísicos com densidades milhões de bilhões de vezes maiores do que o ouro. As descobertas que poderão ser feitas no RHIC são muito promissoras. Mas, certamente, não são apocalípticas.

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