domingo, 2 de janeiro de 2000

E o mundo não acabou

Se tudo tiver dado certo, você estará curado, ou quase, de sua ressaca de virada de milênio (uma virada simbólica, pois, na verdade, a virada ocorre em 2001), lendo esta coluna confortavelmente em sua casa ou na praia. Como eu escrevi este texto antes da grande virada, não posso garantir qual o meu estado no momento. Mas devo congratulá-lo(a) pela sua perseverança. Por via das dúvidas, resolvi enviar essa coluna para a redação tanto por e-mail como por "pomba-mail". Afinal, é difícil prever o que poderá acontecer com o famoso problema Y2K -o bug do ano 2000.

Claro, se você está lendo esta coluna, ao menos a redação da Folha e os distribuidores de jornais sobreviveram ao possível apocalipse eletrônico. Mas também é possível que, para você estar lendo o Mais! agora, o pessoal da Folha tenha recebido minha coluna via pomba-mail, datilografado o texto nas Olivettis resgatadas às pressas do almoxarifado, fazendo as cópias necessárias usando papel-carbono e o mimeógrafo da escola ao lado. Parece mentira, mas máquinas de escrever, papel carbono e mimeógrafos são coisa do passado. Do milênio passado.

Vamos então supor que o jornal tenha chegado às suas mãos, talvez entregue por alguém de bicicleta, já que as bombas de gasolina também resolveram achar que estamos no ano 1900, e não em 2000. Como não havia bomba de gasolina em 1900, os postos tiveram que fechar e as bicicletas invadiram as ruas do Brasil. Começamos o novo milênio como terminamos o outro, sem carros, sem computadores, sem televisores, sem cinema, sem microondas, sem CDs e DVDs e mesmo sem o rádio.

Com saudades da música, as pessoas começam a cantar em casa, nas ruas, e os teatros com música ao vivo lotam. Aos poucos, as máquinas que sobreviveram ao problema Y2K começam a quebrar e, por falta de peças, elas são encostadas de lado e esquecidas. Sem elevadores, as pessoas preferem abandonar os prédios altos e trabalhar em escritórios em casas ou em prédios de três andares.

A concentração urbana deixa de fazer sentido, e as pessoas começam a voltar para o campo, a plantar sua própria comida, reinventando a agricultura de subsistência em larga escala. No meio tempo, técnicos tentam consertar os computadores, mas, como seu equipamento depende também de microchips que emperraram (não existiam microchips em 1900), eles não conseguem fazer nada.

Após meses de tentativas frustradas, todos desistem da tecnologia e resolvem viver junto à natureza, tranquilos. Algumas pessoas resolvem entoar hinos ao Sol, para garantir uma boa colheita e alimentos fartos para todos. Outros cantam para os céus, para espantar as enchentes.
Quando alguém fica doente, os médicos tentam usar os remédios que sobraram do milênio passado, quando o mundo era adiantado. Mas os remédios vão acabando, seus prazos de validade vão vencendo, e as ervas medicinais se tornam cada vez mais importantes. Grandes peregrinações são organizadas para a floresta amazônica, onde as pessoas aprendem com os ianomâmis e outros nativos como usar as plantas para curar e inspirar. Os índios se tornam nossos mestres.

Claro, as conquistas do milênio passado estão todas nos livros, milhões deles, contando em detalhe nossa história, nossas invenções e nossos absurdos. Aos poucos, as pessoas começam a reinventar o mundo, recriando as tecnologias que fizeram o século 20 ser tão revolucionário.

Mas tudo agora é diferente. O retorno forçado à natureza causou uma pane na cabeça das pessoas. Ficou óbvio o quanto dependemos dela, o quanto nosso equilíbrio nesse mundo é frágil.
A natureza se tornou uma deusa, adorada por todos, uma nova (e velha) religião universal. Os engenheiros e técnicos reinventam as máquinas, os computadores recriados sem problemas com datas -todas são armazenadas na íntegra, isto é, o ano 2999 não é guardado com 99-, e as coisas vão voltando ao normal.

Mas o mundo mudou, e o susto do milênio transformou a sociedade; as pessoas respeitam diferenças, novas fontes de energia reduzem o efeito estufa e o que é colhido ou cortado é replantado. Sem dúvida, tudo isso é uma utopia de início de milênio. Mas será que é tão difícil assim?

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