quinta-feira, 27 de janeiro de 2000

Buscando a liberdade no interior do núcleo

O núcleo atômico, essa concentração de massa com diâmetro da ordem de um milésimo de bilionésimo de centímetro, tem uma personalidade bastante ambivalente na sociedade moderna. Por um lado, a energia liberada nos processos de fissão nuclear vem contribuindo cada vez mais na produção mundial de energia; avanços na medicina nuclear são extremamente importantes na luta contra várias formas de câncer. Por outro lado, o lixo nuclear, materiais radioativos altamente tóxicos produzidos tanto durante a geração de energia quanto no uso em medicina, apresenta um sério problema ambiental. Isso sem falar no lado realmente pesado do uso do núcleo atômico, nas bombas de fissão e de fusão (bomba "H") nuclear. Com toda essa carga emocional, minha escolha de título para essa Micro/Macro deve parecer paradoxal. Afinal, como que liberdade pode coabitar com física nuclear? Em contrapartida, há quem defenda a posição de que a paz mundial se deve a existência de bombas nucleares.

Para responder a essa pergunta, devemos nos esquecer, por algumas linhas, das repercussões mais nefastas da energia nuclear e nos concentrarmos na belíssima física nuclear moderna. Antes de mais nada, uma breve revisão: o núcleo atômico é composto de prótons e nêutrons, os prótons com carga elétrica positiva e os nêutrons...adivinhe! Imediatamente, surge uma questão óbvia. Se os prótons tem carga positiva e cargas iguais se repelem, o que mantém o núcleo colado? Existe uma outra força no núcleo, a força nuclear forte, que é em torno de 100 vezes mais forte do que a repulsão elétrica. Essa força "gruda" os prótons e nêutrons juntos e só age dentro de distâncias nucleares. Isso já sabíamos desde a década de 30. Já nos anos 60, descobriu-se que os prótons e nêutrons, e centenas de outras partículas observadas em experimentos de altas energias, são feitos de uma outra partícula, o quark. Na verdade, existem seis quarks, conforme descobrimos nos anos 90.

Os quarks são partículas muito tímidas. Sua propriedade mais misteriosa é chamada de confinamento: não podemos observar um quark livre, como observamos um elétron ou um próton. Quarks sempre aparecem em pares ou triplas. Se tentarmos separar um par de quarks de forma a isolar um deles, acabamos criando dois pares! O mesmo acontece com ímãs; se você tentar "isolar" um polo magnético quebrando o ímã, você acaba com dois ímãs. A imagem que usamos para representar tal fenômeno é a de um par de quarks ligados por uma mola.

Se expandirmos a mola até ela quebrar, a energia usada cria um novo par de quarks, e ficamos com duas molas e dois pares de quarks na mão; como dizia Einstein, E=mc2, a energia pode criar matéria. Mas nem tudo está perdido.

A mesma teoria que descreve quarks descreve como eles interagem entre si, também por meio de uma força forte. Eles trocam partículas chamadas glúons, que mantém os quarks unidos nos prótons, nêutrons, etc. Essa teoria prevê que a timidez dos quarks desaparece a distâncias bem íntimas. Ou seja, a distâncias muito pequenas e energias muito altas, os quarks se comportam como partículas livres, num processo chamado de liberdade assintótica. Essas distâncias só podem ser atingidas de dois modos: a frações de segundo após o Big-Bang, a fase de altíssimas temperatura e densidade que marca o início da historia do universo, ou em colisões entre núcleos atômicos a altíssimas energias. Nessas condições dramáticas, as partículas que contém os quarks e os glúons sofrem uma metamorfose, transformando-se em uma sopa de quarks e glúons, ou um plasma de quark-glúons, como ovos mutantes que se quebram revelando suas duas ou três gemas (os quarks) e a clara em torno delas (os glúons).

No início de fevereiro, um time com mais de 600 físicos no Cern, laboratório europeu de física de altas energias, declarou ter identificado a presença do plasma de quark-glúons em colisões de núcleos de chumbo e ouro. Para tal, as colisões criaram temperaturas 100 mil vezes maiores que no centro do Sol, que ocorreram quando o Universo tinha menos de um milésimo de segundo de existência. Certos tipos de timidez são extremamente persistentes.

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