domingo, 28 de outubro de 2001

Lentes gravitacionais

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Em 1919, expedições astronômicas à África e ao nordeste do Brasil comprovaram uma das previsões mais estranhas da teoria da relatividade geral proposta por Einstein apenas três anos antes: a de que uma concentração de massa distorce a geometria do espaço à sua volta de modo a encurvar raios luminosos que passem por perto. As expedições observaram (com sucesso relativo) a luz de uma estrela distante durante um eclipse total do Sol. Com isso, era possível medir como a presença do Sol distorcia a trajetória dos raios de luz provenientes da estrela e comparar o desvio com a previsão de Einstein. A confirmação da teoria transformou Einstein em celebridade mundial quase que da noite para o dia: afinal, a teoria de Newton, aceita desde o final do século 17, havia sido suplantada.

Esse efeito da matéria sobre a luz abriu um número enorme de possibilidades para o estudo do Universo. Já que a matéria pode distorcer raios luminosos (e outras formas de radiação eletromagnética, mesmo se invisíveis aos nossos olhos, como ondas de rádio), ela pode agir exatamente como lentes agem sobre a luz, ora focando-a, ora distorcendo imagens. Imagino que o leitor saiba que uma lente de aumento pode focar raios de luz provenientes do Sol, de modo a aumentar a sua intensidade em um determinado ponto.

Imagino também que ao menos alguns dos leitores já tenham usado esse efeito para queimar papel ou formigas. Vamos então supor que em nossa galáxia existam inúmeros objetos maciços que não produzem luz, como planetas, ou têm baixa luminosidade, como estrelas de baixa massa, chamadas de anãs brancas ou anãs marrons. Se um desses objetos escuros passar em frente a uma estrela que estejamos observando, a luz dessa estrela sofrerá um desvio que tenderá a focalizá-la, aumentando a sua intensidade. Ou seja, o objeto intermediário age como se fosse uma lente, focando a luz de um objeto mais distante.

Esse método tem sido usado para estimar a quantidade de objetos maciços invisíveis em nossa galáxia. Isso é importante devido à presença da misteriosa "matéria escura", matéria que não emite sua própria luz, mas que exerce atração gravitacional tal como a matéria comum. Estima-se que em galáxias normais exista em torno de dez vezes mais matéria escura do que matéria luminosa. Usando o efeito de intensificação da luminosidade, astrônomos mostraram que ao menos 10% da matéria escura da galáxia existe na forma de objetos pequenos e maciços, como as anãs brancas.

Mas o efeito mais dramático das lentes gravitacionais aparece a distâncias bem maiores, quando os objetos estão localizados a bilhões de anos-luz da Terra. Quasares são fontes de radiação extremamente potentes e distantes. Caso sua radiação passe perto de uma galáxia ou um grupo de galáxias mais próximo, sua luminosidade pode ser amplificada, como no caso das estrelas em nossa própria galáxia. Esse efeito é semelhante ao de um amplificador de som. Podemos ver (ouvir) algo que seria invisível (inaudível) sem a amplificação.

Outra possibilidade é que, dependendo da distribuição de matéria, a imagem original do quasar possa ser duplicada ou multiplicada diversas vezes: em vez de vermos um quasar, vemos dois ou mais. Como a luz traça trajetórias diferentes para cada uma dessas imagens, elas não chegarão até nós ao mesmo tempo. Essa diferença no tempo de chegada pode ser usada para medir a distância até o quasar. Por exemplo, se o quasar sofrer uma grande flutuação na sua luminosidade, ela aparecerá em uma imagem antes de aparecer em outras. Medindo a diferença no tempo de chegada podemos estimar a distância.

Um outro efeito das lentes gravitacionais é o da distorção de imagens de objetos longínquos. O leitor pode fazer a seguinte experiência: pegue uma taça de vinho e coloque-a sobre o texto desta coluna. Movendo a taça você observará uma distorção da imagem do texto, que é maior perto da haste da taça, onde o vidro é mais curvo. O mesmo ocorre com imagens de quasares ou galáxias distantes: ao passar perto de galáxias mais próximas a imagem desses objetos longínquos é distorcida. Muitas vezes observam-se arcos luminosos, a imagem do objeto alongada e encurvada como pode-se ver com a taça de vinho. Com isso, é possível reconstruir a distribuição de massa da "lente", inclusive a quantidade de matéria escura presente. As lentes gravitacionais são uma nova janela para o Universo, que nos permite ver a matéria que é invisível aos nossos olhos.

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