domingo, 10 de fevereiro de 2002

Ciência pós-moderna

.
O poeta romântico britânico John Keats (1795-1821), numa clara demonstração de seu desprezo pela ciência, acusou seu conterrâneo Isaac Newton (1642-1727) de destruir a beleza de um arco-íris ao explicá-lo quantitativamente a partir de equações da física. Keats, como todos os românticos, estava respondendo à preponderância do racionalismo na intelectualidade européia do início do século 19, tentando resgatar um lirismo que eles acreditavam perdido em meio a tantas fórmulas e leis matemáticas. Ao rotular a ciência de fria e destituída de beleza, Keats e seus companheiros revelaram a sua incompreensão do que realmente ela é e de como funciona.

Para aqueles que tentam desvendar os mistérios da Natureza pela razão, nada poderia ser mais belo e gratificante do que uma revelação, por menor que seja, dos mecanismos secretos que controlam o funcionamento do cosmo. Se o poeta descreve com palavras as suas emoções ao ver um arco-íris, os cientistas as descrevem com matemática e lógica. A motivação de ambos é trazer algo do mundo para a sociedade, algo capaz de adicionar novas perspectivas às nossas vidas. Mas o arco-íris é o mesmo, seja ele revelado por palavras ou equações. E é belo tanto em letras quanto em números.

Essa confusão entre o que é a ciência e de qual é a sua linguagem não é nada nova e também não é restrita aos meios não especializados. O físico e escritor britânico C.P. Snow escreveu um ensaio no final dos anos 50 intitulado "As Duas Culturas", no qual expõe o grande vão que existia (e existe) entre as ciências e os "intelectuais humanistas", como por exemplo aqueles que escrevem ensaios críticos sobre literatura, psicanálise e sociologia. Segundo Snow, a rixa entre essas duas culturas está levando a uma divisão cada vez maior da sociedade, onde cientistas e intelectuais tornam-se mais herméticos e entrincheirados, uns críticos da missão dos outros, num cabo de guerra que acaba por fossilizar a ambos. Talvez essa rixa entre as duas culturas seja justamente a versão moderna da divisão entre os racionalistas e os românticos do século 19, revestida de um linguajar mais sofisticado, mas não menos nocivo.

Uma das críticas feitas à ciência pela cultura humanista vem da corrente pós-modernista, onde o ato de ler ou interpretar um texto não pode jamais ser desengajado de quem o está lendo, de quando ele está sendo lido e de onde ele foi escrito e está sendo lido. Segundo os filósofos da corrente pós-moderna, como Michel Foucault e Jacques Derrida, o mesmo texto tem inúmeras interpretações ou significados, que dependem da bagagem cultural de quem o lê. De certa forma, o ato de ler interfere com o que está sendo lido, com o leitor dotando o texto de um significado próprio.

Algo semelhante aparece na física quântica, a que descreve o comportamento dos átomos, sob o nome de "princípio de incerteza": o ato de observar interfere no que está sendo observado. No mundo do muito pequeno, o observador não pode ser separado do observado, formando ambos um todo indivisível. Na literatura, o significado do texto depende de como ele é lido, constituindo leitor e texto um todo indivisível.

A aplicação dos conceitos pós-modernos à ciência gera uma enorme confusão. Afinal, o grande triunfo da ciência é justamente criar símbolos descritivos que têm um único significado, como as leis da natureza, imutáveis e atemporais. As leis de Newton, que descrevem o movimento dos corpos materiais, são válidas em qualquer lugar do mundo e do Universo, desde que aplicadas dentro de seus limites. Imagine o caos que existiria se as leis da natureza fossem passíveis de uma interpretação cultural, se engenheiros na Índia e no Brasil discordassem de como os princípios da estática funcionam. Certamente, em um dos dois países, os prédios jamais ficariam de pé.

Foi a essa confusão que aludiu a crítica de C.P. Snow, para quem deve-se ter muito cuidado ao aplicar conceitos de uma área em outra. Isso é verdade ao se tentar discutir o "significado do significado" na interpretação da ciência ou o princípio da incerteza na literatura. E como podemos evitar que a confusão permaneça? Por meio de uma cooperação mútua entre profissionais de ambas as culturas, quem sabe até criando uma terceira cultura, caracterizada pela multidisciplinaridade, na qual os limites de cada uma delas são reconhecidos e explorados na geração de novo conhecimento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário