domingo, 3 de fevereiro de 2002

O mestre da incerteza

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O último mês de dezembro marcou o centenário do nascimento do grande físico alemão Werner Heisenberg, um dos pioneiros da mecânica quântica, cuja descrição do comportamento dos átomos e das partículas subatômicas, os tijolos fundamentais da matéria, revolucionou a visão de mundo moderna.

A trajetória profissional de Heisenberg foi espantosa: aos 21 anos ele terminou o seu doutoramento em Munique; no ano seguinte, em 1924, foi a Copenhagen trabalhar com o já famoso Niels Bohr; em 1925, desenvolveu a primeira versão da mecânica quântica, enquanto se recuperava de uma séria crise de alergia na ilha de Heligoland, na Dinamarca; e, em 1927, introduziu o "princípio de incerteza", que redefiniu a maneira de interpretarmos as nossas interações com o mundo. Esses feitos, já suficientes para reservar a sua presença no seleto grupo dos imortais da ciência, são apenas parte do seu legado.

Se a herança de Heisenberg como cientista é impecável, já como cidadão do mundo a situação é bem mais complicada. Isso porque o físico chefiou o projeto nuclear nazista durante a Segunda Guerra Mundial, por motivos que, ainda hoje, não estão exatamente esclarecidos. De fato, os leitores que tiveram a oportunidade de assistir à peça teatral "Copenhagen", de Michael Frayn [em cartaz em São Paulo", sabem que a atuação de Heisenberg na Alemanha nazista é tão ambígua quanto as incertezas que ele descobriu no mundo dos átomos.

Existem versões diferentes de por que Heisenberg não abandonou a Alemanha, como fizeram vários cientistas da época. Ele pode ter ficado para ajudar o país a desenvolver o seu programa nuclear, tanto na construção de reatores como na fabricação de bombas. Se é razoável questionar tal posição, devemos lembrar que Heisenberg, como a maioria dos alemães, sofreu muitas privações durante e após a Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha passou por séria crise econômica. Patriota, Heisenberg não queria que seu país e seus filhos passassem pelas mesmas humilhações. Não seria a primeira vez na história que o patriotismo cegaria até os mais iluminados.

Também é perfeitamente possível que Heisenberg tenha ficado na Alemanha justamente para sabotar o programa nuclear nazista, criando pistas falsas que impedissem o seu sucesso. Após o fim da guerra, ficou claro para os aliados que os nazistas estavam longe de conseguir chegar ao processo de fissão descontrolada dos núcleos atômicos, que leva à colossal liberação de energia das explosões nucleares. Heisenberg, como em seu princípio, nos deixou com a incerteza de não sabermos qual foi a sua escolha, de herói da humanidade ou de patriota cego.

Afinal, o que diz o famoso princípio? À primeira vista, ele não parece ser muito interessante, ao afirmar, em sua versão mais simples, que é impossível medir-se simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula com precisão arbitrariamente alta. Por exemplo, se quisermos saber a posição e a velocidade de um elétron que gira em torno de um núcleo atômico, teremos de nos contentar com medidas de precisão limitada. E, o que é pior, quanto mais tentarmos melhorar a precisão de uma das medidas, maior será o erro na outra.

Para medir algo, é preciso interagir com o que se está medindo. Imagine que você está na rua, à noite, em plena escuridão (durante um apagão, por exemplo), procurando seu carro. Você acende uma lanterna e é a luz dela, refletida pelo carro e viajando até a sua retina, que acusa a sua posição. Os raios luminosos são a "ponte", a interação entre o carro o objeto obervado e você o observador. Imagine que você possa encolher o carro até ele ficar bem pequeno, do tamanho de uma bactéria. Isso é o que ocorre em um microscópio, e a luz do microscópio é refletida (e transmitida) pela bactéria, acusando a sua posição. Aqui cabe lembrar que a luz, sendo uma onda se propagando pelo espaço, pode empurrar objetos. Claro, eles têm de ser bem pequenos para que isso ocorra -menores ainda que uma bactéria. Quando se chega aos elétrons e outras partículas, a luz que usamos para "enxergá-los", isto é, para medir a sua posição, acaba empurrando-os para longe, fazendo com que eles ganhem velocidade. Daí a incerteza entre a posição e a velocidade. Pelo menos esse tipo de incerteza, descoberta pelo mestre delas todas, pode ser compreendido mais facilmente do que aquelas que existem em nossas mentes, secretamente, confundindo as escolhas que fazemos pela vida afora.

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