quinta-feira, 3 de julho de 2003

Cozinhando a sopa primordial

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Um dos objetivos da cosmologia, a reconstrução da história cósmica desde os seus primórdios até a era de formação de galáxias e estrelas, tem uma limitação fundamental: infelizmente, não é possível voltar no tempo para examinar em detalhe o que ocorria nessa ou naquela época. A informação tem de ser obtida por dois métodos bastante diversos: o primeiro procura por pistas nos céus, fósseis de eras passadas, como fazem os paleontólogos e arqueólogos aqui na Terra com as suas escavações.

Esse método, tradicionalmente parte da astronomia, tem tido sucesso: por exemplo, resultados recentes do satélite americano WMAP confirmaram algumas das propriedades mais importantes do cosmos. Sua idade, 13,8 bilhões de anos, sua geometria, plana, e a época em que as primeiras estrelas nasceram, apenas 200 milhões de anos após o Big Bang, evento que marcou a origem cósmica. Os métodos astronômicos também têm suas limitações. Eles dependem da observação de luz e radiação detectável por vários tipos de telescópio, dos ópticos (luz visível) aos que observam outras regiões do espectro eletromagnético.

Para observarmos qualquer tipo de radiação, ela precisa viajar livremente pelo espaço, desde a sua fonte até o instrumento de medida. Ou seja, o espaço tem de ser transparente à passagem de radiação. O problema é que, antes de o Universo atingir 300 mil anos, a radiação não podia viajar livremente, pois interagia fortemente com as partículas de matéria existentes então, principalmente elétrons e prótons. O Universo primordial era extremamente denso, dificultando a passagem da radiação. A situação era semelhante a uma corrida com tantos obstáculos que fica impossível completá-la. O cosmo, do Big Bang até 300 mil anos, era opaco: a radiação que existia naquela era não pode nos atingir. (Ao leitor confuso com a idéia de que ver um objeto distante é olhar para o passado, lembre-se de que a velocidade da luz é alta, mas finita: demora um tempo para ela vir de um ponto distante até nós.)

O que nos leva ao segundo método, adequado ao que ocorreu durante os primeiros 300 mil anos de vida do cosmos: reconstruir no laboratório as condições de temperatura e densidade de matéria que existiram durante essas épocas.

A história do Universo primordial é como uma peça de teatro dividida em vários atos, cada qual com seus atores. Indo para trás no tempo, o último ato pertence à física atômica, com a radiação, elétrons e prótons como atores principais. O ato termina aos 300 mil anos, quando elétrons e prótons juntam-se para formar átomos de hidrogênio, e a radiação fica livre, inaugurando a era astronômica discutida acima.

O penúltimo ato pertence à física nuclear, e dura de 0,00001 segundo até 3 minutos após o Bang. No início, prótons e nêutrons não interagem, pois a temperatura é muito alta. Aos poucos ela vai baixando, e são formados os primeiros núcleos leves, compostos de grupos de prótons e nêutrons. Esses dois últimos atos são bem estudados. O desafio está em reconstruir os atos anteriores.

Isso é feito em colisores de partículas, máquinas que aceleraram grupos de partículas de modo que elas se choquem com alvos fixos (ou com outras viajando no sentido oposto) a gigantescas velocidades. Um experimento no Colisor Relativístico de Íons Pesados (RHIC) nos EUA recriou as condições que existiam no cosmos antes da existência de prótons e nêutrons: estas partículas são formadas por outras, conhecidas como quarks. Por sua vez, os quarks interagem entre si através de partículas chamadas glúons (do inglês "glue", ou cola).

A teoria prevê que, antes de 0,00001 segundo, a matéria no Universo era composta por uma sopa de quarks e glúons. Essa foi a sopa primordial cozinhada no RHIC: por breves instantes, a incrível energia da colisão entre núcleos de átomos de ouro recriou o plasma de quarks e glúons que existia na infância do Universo com temperaturas de trilhões de graus. O próximo passo é reconstruir o ato anterior, um passo mais próximo do misterioso primeiro ato.

Um comentário:

  1. Oi Marcelo! Parabéns pela didática de suas explicações! Gostaria de saber sua opinião sobre o Big Bounce.
    Abraço,
    Antonio Pepinelli.

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