domingo, 22 de fevereiro de 2004

O Carnaval da ciência


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Domingo de Carnaval, e no Brasil, pelo menos, milhões de pessoas estão nas ruas pulando com seus blocos ou torcendo pelas suas escolas.
Este ano marca a entrada de um novo tema nas passarelas: a ciência. A escola de samba Unidos da Tijuca, do Rio de Janeiro, desfilará esta noite com o enredo "O Sonho da Criação e a Criação do Sonho: A Arte da Ciência no Tempo do Impossível", provando definitivamente que ciência também dá samba.

O enredo, desenvolvido com o apoio da Casa da Ciência/Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explora a função do sonho e da imaginação na criatividade científica, usando como ilustração grandes avanços e descobertas na química, biologia e física. Tem até máquina do tempo.

Genial, essa iniciativa. Combinar a maior festa brasileira com ciência é ajudar a desmitificá-la junto a um público que, na maioria, tem pouco interesse por essas coisas. E o uso do sonho, do papel da imaginação na criatividade científica, como gancho é perfeito, pois ajuda a humanizar a ciência, a mostrar que ela também é fruto dos mesmos anseios e dúvidas que afligem a todo ser humano.

Afinal, a ciência lida com o desconhecido, com questões que vão desde o mundano e prático ao sublime e grandioso. Trazer essa busca pelo conhecimento para a passarela é um experimento que desbrava fronteiras culturais e que mostra grande coragem e inspiração do carnavalesco Paulo Barros e sua equipe.

Ninguém sabe ao certo o que é criatividade, ou por que alguns indivíduos são mais criativos do que outros. É comum dizer que criativo é aquele que consegue ver conexões e estabelecer pontes entre assuntos que, para a maioria, são completamente independentes.
Uma vez estabelecidas, porém, conexões antes ocultas se tornam óbvias, quase inevitáveis. A ciência é uma grande narrativa, uma linguagem que inventamos para traduzir o mundo natural em símbolos e conceitos que possamos compreender. Ela humaniza a natureza.

E a arte humaniza o homem. A junção das duas ocorre justamente na pergunta, na vontade de criar significado, de compreender os dois mundos onde coexistimos, o mundo exterior e o mundo interior (que, na verdade, são o mesmo). As mensagens se complementam e não podem ser separadas por completo.

Se Einstein falava de espaços curvos no início do século 20, e Bohr e outros, da descontinuidade inerente ao mundo atômico, Picasso e Braque falavam da decomposição da forma na pintura e na escultura, da reestruturação do espaço em sua representação gráfica. A ciência revelando uma nova compreensão do espaço e do tempo, e a arte, uma nova forma de expressá-los.
As duas fazem parte de nossa relação com o mundo. E ambas dependem da criatividade humana, da fusão de conceitos distintos, do sonho imaginativo e corajoso que consegue romper padrões estabelecidos e criar o novo.

Sem dúvida, alguns acharão que misturar samba com ciência é deturpar a seriedade do processo científico, transvesti-lo em algo que não é. Eu discordo. É justamente dessas novas roupas que a ciência precisa, para que seja apreciada por um número cada vez maior de pessoas. Isolar as descobertas científicas em jornais científicos e laboratórios é equivalente a esconder todos os quadros e poemas já escritos em um almoxarifado sem porta.

A ciência faz parte de nossa cultura e tem de ser vista como tal. Se o seu significado tem de ser traduzido para que seja captado por setores maiores da população, que seja assim. Ninguém espera aprender ciência a partir de um desfile de carnaval. Mas se pode aprender sobre ciência e, ainda mais importante, por que certos indivíduos decidem dedicar suas vidas na busca por significados e conexões por trás de nossa limitada percepção sensorial do mundo natural.

Portanto, boa sorte, Unidos da Tijuca. Fico orgulhoso de ver a ciência na avenida, em meio a muito samba, suor e cerveja. Afinal, a dança ocorre em vários níveis: das pessoas aos elétrons, prótons, neutrinos e às radiações as mais diversas, algumas vindas dos confins do espaço, outras daqui mesmo, tudo vibrando em freqüências visíveis e invisíveis, espalhando conhecimento e sorrisos em uma noite do verão carioca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário