domingo, 15 de fevereiro de 2004

Samba do neutrino doido

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

O Carnaval está chegando, e os vários blocos e escolas estão acertando os últimos detalhes, sincronizando a bateria, apertando as fantasias, colando mais penas nos chapéus, encolhendo alguns milímetros a mais nos biquínis, reescrevendo trechos do samba-enredo. E, no meio do calor e da euforia crescente, os estranhos neutrinos continuam chovendo sobre a Terra, passando por tudo e todos, quase como fantasmas.

O samba dos neutrinos não tem enredo, só energia. Agora mesmo, o leitor está sendo atravessado por trilhões deles por segundo. Mas não se sinta violado. Como já diz o nome ("o pequeno nêutron", claro que dado por um italiano, no caso Enrico Fermi), neutrinos são partículas praticamente inertes, sem carga e com massa extremamente pequena. Aliás, até pouco tempo atrás, achava-se que nem massa eles tinham.

Quando o alemão Wolfgang Pauli propôs a existência do neutrino em 1930, ninguém deu muita bola. A partícula nasceu de parto induzido, para garantir uma das leis mais sacrossantas da física, a lei de conservação da energia. Energia pode se transformar, mas não ser criada. Portanto, um evento envolvendo a colisão de partículas subatômicas como elétrons e prótons tem de ter a mesma energia antes e depois. Mas quando um nêutron se desintegrava em um próton e um elétron (um nêutron isolado é uma partícula instável), ficava faltando energia. Pauli sugeriu que essa energia estava sendo carregada por uma nova partícula, o neutrino. Apenas em 1956 a sua existência foi confirmada. A dificuldade em achar o neutrino vem justamente da sua inabilidade de interagir com partículas de matéria. Eles podem atravessar a Terra inteira sem colidir uma única vez. Daí a sua reputação de partículas-fantasma.

Hoje, sabemos que existem ao menos três neutrinos, cada um associado à uma partícula diferente: o neutrino do elétron, o do múon e o do tau, descoberto há três anos. As partículas múon e tau são primos mais pesados do elétron, com a mesma carga elétrica. Neutrinos são forjados no centro de estrelas como o Sol, em desintegrações de núcleos radioativos e em raios cósmicos, quando prótons produzidos em diferentes regiões do espaço colidem com as moléculas de ar na atmosfera.

Aparentemente, os três tipos de neutrinos podem se metamorfosear entre si, trocando de identidade; o do elétron pode virar o do múon ou o do tau etc. Isso só pode ocorrer se eles de fato têm massa. É um fenômeno parecido com o que ocorre nas cores, que podem ser produzidas a partir de combinações do verde, vermelho e azul com diferentes pesos. Imagine então o neutrino como sendo uma combinação dos três tipos fundamentais, pulando de um para outro durante sua viagem pelo espaço. Esse é o samba do neutrino doido.

Em 1995, a coisa ficou mais complicada. Um experimento no laboratório de Los Alamos, nos EUA, indicou a possível existência de um quarto neutrino, chamado de "neutrino estéril". Se os outros neutrinos são difíceis de serem descobertos com a ajuda de suas interações com a matéria (e esse é o único de jeito de comprovar a sua existência), o neutrino estéril é muito mais. A maioria dos físicos acha que o experimento de Los Alamos está errado. Eles não viram o novo neutrino, mas inferiram a sua presença indiretamente, mostrando que existem três intervalos de massa entre os vários tipos de neutrino, e não dois. Do mesmo jeito que existem três espaços entre quatro dedos da sua mão, se existem três espaços entre as massas dos diferentes neutrinos, é porque existem quatro deles. Se isso for verdade, várias teorias terão de ser recalibradas, desde as que ditam como entendemos a geração de energia em estrelas até as que descrevem as partículas fundamentais da matéria e a expansão do Universo.

Um experimento no Fermilab, perto de Chicago (Illinois, EUA), irá caçar os neutrinos estéreis, produzindo um feixe de neutrinos e usando 800 toneladas de óleo Johnson como alvo. Os neutrinos colidem com os átomos de carbono do óleo, produzindo elétrons e múons, que são detectados. Da razão entre o número de elétrons e múons é possível inferir se existem quatro ou três neutrinos. A análise dos resultados levará anos. Nesse meio tempo, os neutrinos continuarão sambando pelo Universo, seguindo um enredo que só eles sabem.

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