domingo, 15 de maio de 2005

De vácuo cheio

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Aristóteles já dizia: a natureza odeia o vácuo. Bem mais tarde, Descartes disse algo semelhante, postulando a existência de um fluido que permeava todo o cosmo. Já Newton, no final do século 17, demonstrou que o francês errou: o espaço entre os planetas é vazio mesmo. Caso contrário, argumentou, as órbitas planetárias não seriam estáveis. A idéia de que o espaço vazio não existe, ou melhor, que o nada não significa a ausência de tudo, teve seus altos e baixos na história. Hoje em dia anda em alta.

Em 1998, dois grupos de astrônomos, um dos EUA e outro da Austrália, fizeram uma descoberta que chocou a comunidade: o Universo parece estar com pressa, em taxa de expansão acelerada. Que o Universo cresce já era sabido desde 1929. Mas não com velocidades que crescem exponencialmente com a distância. Vale pausar e descrever o que significa essa expansão. Em um Universo estático, a distância entre duas galáxias é sempre a mesma. Expansão significa que a distância entre elas cresce no tempo; não em escalas pequenas, como no Sistema Solar ou em uma galáxia. Esses objetos permanecem do mesmo tamanho devido à atração gravitacional entre seus componentes. A expansão ocorre em escalas intergalácticas, de dezenas de milhões de anos-luz. Como comparação, Andrômeda, nossa vizinha, está a 2 milhões de anos-luz. Dado que o Universo está em expansão acelerada, a pergunta óbvia é por quê.

A aceleração tem de ser causada por algo que aja como uma espécie de antigravidade, repelindo matéria. Em 1917, o próprio Einstein, no primeiro trabalho em que aplicou sua teoria da relatividade geral à cosmologia, postulou a existência de uma "pressão negativa", uma constante que colocou em suas equações, cujo efeito era precisamente esse. Mais tarde, quando viu que as observações contradiziam essa constante, retirou o termo. Mas ele está de volta.

Dado que o Universo está em expansão acelerada, a pergunta óbvia é por quê

A chamada constante cosmológica é uma das explicações cogitadas para a expansão acelerada. Ela pode ser interpretada como um fluido permeando todo o cosmo, uma espécie de versão moderna da quintessência aristotélica. A propriedade importante da constante cosmológica é que, como diz o nome, não muda no tempo.

Outro candidato é um fluido que pode mudar no tempo (ficando menos denso), mesmo que a escala dessa mudança seja da ordem de bilhões de anos. Apesar de especulativas, as duas possibilidades são o que temos de melhor no momento. Como discernir entre elas? Como medir efeitos que variam (ou não) em escalas de bilhões de anos?

Um projeto em desenvolvimento na Nasa, conhecido como Sonda das Supernovas Aceleradas (Supernova Acceleration Probe, on Snap), pretende medir distâncias até objetos que estão a cerca de 10 bilhões de anos-luz daqui. Isso significa que a luz recolhida por telescópios hoje saiu desses objetos há 10 bilhões de anos. Snap será um telescópio orbital com fotodetectores extremamente sensíveis, capazes não só de encontrar as supernovas em galáxias arcaicas e, portanto, medir sua distância e velocidade mas também de medir as variações (ou não) do fluido através do tempo a partir das distorções que causa na geometria do espaço: quanto mais denso o fluido, maior a distorção. O projeto, se aprovado, será lançado em 2014. Até lá, a natureza da quintessência continuará misteriosa. Mas imagino que, ao menos para Aristóteles, já bastaria saber que ela existe. O cosmo está de vácuo cheio.

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