domingo, 8 de maio de 2005

A mão esquerda da criação

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

O título desta coluna vem do nome de um livro dos cosmólogos John Barrow e Joseph Silk, reeditado em 1993. Nele, descrevem a evolução do Universo, motivados por algo que Pierre Curie, o marido de Marie Curie, escreveu: "é a assimetria que cria o fenômeno".

Com isso, Curie quis dizer que tudo o que ocorre na natureza, todas as transformações, todo o dinamismo que caracteriza os fenômenos naturais, são produtos de um desequilíbrio, de um desajuste. Os movimentos que percebemos, a criação de estruturas complexas a partir daquelas mais simples, são conseqüência de desigualdades, de assimetrias: a natureza tenta "consertá-las", tenta restaurar o equilíbrio. Essa redistribuição de energia está por trás do dinamismo que dita a evolução de todas as coisas, dos átomos aos planetas, da vida ao Universo inteiro. Se a natureza atingisse um estado final de equilíbrio, o tempo, medida das coisas que se transformam no espaço, das transformações que vemos no mundo e em nós próprios, deixaria de existir. A assimetria propele o tempo.

Escondida entre as assimetrias que ditam o dinamismo cósmico existe outra, a da vida. Foi Louis Pasteur quem, na segunda metade do século 19, mostrou que existe uma assimetria fundamental na química da vida. Cerca de 90% das pessoas são destras; as conchas com forma espiral também são predominantemente destras. Pasteur especulou que essa escolha de quiralidade, a propriedade de um objeto em três dimensões ter uma orientação preferencial, era o segredo da química dos seres vivos.

Se a natureza atingisse um estado final de equilíbrio, o tempo deixaria de existir

Hoje, sabemos que tinha razão. Os aminoácidos codificados pelas cadeias de DNA e RNA, as moléculas responsáveis pela preservação e transmissão do código genético, são todos canhotos. Já as moléculas dos açúcares nessas cadeias são todas destras. Em princípio, não existe razão para que apenas uma das duas predomine. Mais estranho ainda é que a escolha não seja apenas predominante, mas exclusiva. Por que a vida escolheu apenas os aminoácidos canhotos?

Esta "homoquiralidade", ou seja, a dominação completa de uma orientação espacial sobre a outra, é um dos grandes mistérios da ciência moderna, ligada à origem da vida na Terra. É importante lembrar que mesmo os seres mais primitivos têm uma bioquímica extremamente complexa, produto da evolução a partir de moléculas mais simples. Essas moléculas interagiram, formando cadeias cada vez maiores, até que se tornaram capazes de replicação. Segundo os modelos mais aceitos, antes de a vida ter surgido, a Terra tinha uma distribuição homogênea desses elos, tanto os canhotos quanto os destros.

Essas moléculas flutuavam pelo gigantesco oceano que cobria quase toda a superfície do planeta. Quais mecanismos poderiam ter levado ao excesso de uma quiralidade sobre a outra até o eventual domínio completo?

Alguns dizem que o desequilíbrio ocorreu por causas acidentais: em algum local havia mais aminoácidos canhotos, e esses dominaram os outros. Outros dizem que o excesso veio do espaço, que meteoritos e cometas vieram já com o excesso, que então se espalhou. O problema é que, até agora, os aminoácidos encontrados em meteoritos não apresentam qualquer excesso. Outra possibilidade é que a radiação ultravioleta (vinda do espaço) tenha favorecido uma orientação sobre outra. O fato é que não sabemos por que a criação prefere os canhotos. Pelo menos os aminoácidos canhotos.

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