domingo, 22 de maio de 2005

O Aleph e os buracos negros

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Jorge Luis Borges, em um de seus contos, postulou a existência de um ponto, flutuando no sótão de uma casa argentina, de onde era possível avistar todo o Universo, sua história passada e futura, a totalidade do espaço e do tempo, concentrados no volume de uma gota. O nome do estranho ponto, Aleph, tem vários significados.

Aleph é a primeira letra do alfabeto hebraico, cuja forma sugere uma conexão entre a terra e o céu. O homem, com os pés na terra, alça os olhos reverentes aos céus. Em matemática, o Aleph-Zero representa o menor dos infinitos, o cardinal (número de elementos) do conjunto dos números positivos inteiros. Em ambos os casos, o Aleph é um veículo de transcendência, uma porta a realidades que vão além do que vemos na rotina diária. Borges captura a mesma transcendência em seu conto.

O italiano Luigi Pirandello escreveu que a ficção, e não a realidade, tem de ser plausível. A teoria que descreve as propriedades dos buracos negros ilustra isso: a realidade é mais estranha e implausível do que a ficção. O Aleph de Borges talvez possa existir, conjurado pelas forças da natureza. Não num sótão de uma casa argentina (talvez lá também, mas não há provas concretas), mas no interior de um buraco negro.

Em sua relatividade geral, Einstein mostrou que a gravidade, a força atrativa entre corpos maciços, pode ser interpretada como sendo causada pela curvatura do espaço em torno dos objetos: quanto mais massa tem o objeto, mais curvo é o espaço à sua volta; se um corpo menor passa perto, viajará num espaço curvo e sofrerá conseqüente aceleração, feito uma criança descendo num escorrega. Por exemplo, a luz de estrelas distantes sofre desvio ao passar perto do Sol.

O Aleph de Jorge Luis Borges talvez possa existir, conjurado pelas forças da natureza

Podemos então imaginar que, se o corpo for muito maciço, a curvatura à sua volta será tal que, uma vez que nos aproximamos demais, é impossível escapar, como num redemoinho. Voltando ao escorrega, se ele for muito íngreme, fica difícil escalá-lo até o topo. O caso limite é quando nem mesmo a luz escapa. São os buracos negros.

Se nem a luz escapa, como podemos saber que buracos negros existem? Pelos efeitos que causam a objetos que passam perto; por exemplo, o centro da Via Láctea tem um com massa superior a 4 milhões de sóis! Esse gigante faz com que estrelas que passem perto tenham órbitas extremas, observadas por radiotelescópios. Todo buraco negro, grande ou pequeno, tem o seu horizonte. É dentro do horizonte que efeitos estranhos podem surgir, especialmente se o buraco negro gira.

Nesse caso, é possível que quantidades enormes de matéria e radiação estejam aprisionadas dentro, contando toda a história do que ocorreu neste buraco negro, bilhões de anos passados, acumulados em um pequeno volume do espaço. O interior do buraco negro é um espelho do Universo fora dele. A teoria prevê também túneis ligando buracos negros ao seus opostos, os buracos brancos. Neste caso, o futuro será espelhado: um observador passando de um buraco negro a um branco veria primeiro o passado e depois o futuro, veria o Aleph.

Infelizmente, mesmo se a teoria estiver correta, parece ser impossível fazer essa viagem -uma pena. Mas não há de ser nada. Podemos sempre resolver as equações da teoria de Einstein ou ler o conto de Borges, sentando em um sótão de uma casa argentina ou em qualquer outro ponto do Universo. A mente pode ir a qualquer lugar.

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