quinta-feira, 30 de junho de 2005

Ciência neutra não existe, afirma Gleiser

Físico brasileiro residente nos EUA diz que o Estado tem dificuldades para controlar avanços tecnológicos de forma imparcial

Marlene Bergamo/Folha Imagem
O físico brasileiro Marcelo Gleiser, professor do Dartmouth College (EUA), em sabatina conduzida no Teatro Folha, em São Paulo


SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Os cientistas costumam apregoar que a ciência veste o manto da imparcialidade. Mas os meios pelos quais ela é administrada sob a forma de tecnologia apresentam falhas, e a neutralidade científica é quase uma utopia. Essa é a visão do físico Marcelo Gleiser, apresentada em sabatina promovida pela Folha anteontem em São Paulo. Compuseram a mesa Vinicius Torres Freire, secretário de Redação da Folha, Claudio Angelo, editor de Ciência, e Laura Capriglione e Ricardo Bonalume Neto, repórteres especiais.

O cientista de 46 anos, 23 dos quais vividos nos Estados Unidos, onde é professor do Dartmouth College, em Hanover (Estado de New Hampshire), se formou em física pela PUC-RJ e é doutor pelo King's College da Inglaterra. Também já trabalhou no Laboratório Nacional Fermi, em Chicago. Para ele, o controle sobre os avanços da ciência de ponta -transgenia, clonagem, pesquisa de células-tronco- em princípio cabe ao Estado. "Mas o Estado tem de estar desinteressado, e aí a coisa fica mais complicada."

Lembrando que boa parte da pesquisa científica recebe financiamentos do governo, Gleiser apontou que os cientistas nem sempre têm condição de controlar os frutos de seu trabalho. O maior exemplo é o do desenvolvimento da bomba atômica -feito por um grupo de cientistas financiados pelos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo Gleiser, "[J. Robert] Oppenheimer [líder da equipe que criou a bomba] sugeriu ao governo que fosse feita uma demonstração no Pacífico, para forçar o Japão a se render". "Mas não fizeram isso, por várias razões", complementou. A maior delas era mostrar o poderio bélico americano para a União Soviética.

Em meio às discussões sobre a confiabilidade da ciência, também surgiu a polêmica da manipulação de resultados de pesquisa por companhias farmacêuticas. Sem ignorar as mazelas do sistema, Gleiser destacou a importância do "peer review" nas publicações científicas -o fato de que, para um artigo ser publicado, ele precisa antes ser aprovado por outros especialistas. "Se isso não funcionar, então nós estamos totalmente perdidos", concluiu.

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA
Gleiser qualificou a importância da inclusão da sociedade nas discussões sobre os rumos da ciência e -sobretudo- das tecnologias dela derivadas. E criticou a falta de destaque que o assunto tem no principal meio de comunicação acessível aos brasileiros, a televisão aberta. "O único programa de TV que há é o "Globo Ciência", que passa no sábado, às sete horas da manhã. Que jovem, depois da madrugada anterior, vai ver? Nenhum. Só se ele varar a noite e pegar o programa de manhã."

Nessa cruzada pela divulgação científica, além de sua coluna no caderno Mais!, Gleiser se dedica a escrever livros. O último, recém-lançado pela Publifolha, é "Micro Macro - Reflexões Sobre o Homem, o Tempo e o Espaço".

O cientista também co-roteiriza um filme sobre um astrofísico brasileiro que vive nos EUA e volta ao país para descobrir suas origens. Jura que o personagem não é autobiográfico.

CRIACIONISMO
Logo no início da sabatina, ele também tocou no tema da recente onda do ensino do criacionismo nas escolas -forte nos EUA, mas presente também no Brasil- como alternativa à teoria da evolução de Charles Darwin.

Ele diz repudiar a mistura entre conceitos religiosos e científicos no ensino e atribui ao menos parte do problema à falta de reação dos cientistas, que muitas vezes se recusam a entrar em conflito com os criacionistas (que defendem a interpretação literal da narrativa bíblica da criação do mundo). "Eles pensam, no momento em que você coloca um criacionista para debater, você está dando uma credibilidade que ele não merece", afirmou Gleiser.

EDUCAÇÃO
Gleiser criticou a maneira como a ciência é ensinada às crianças no Brasil hoje. "Até os 13 anos, as crianças têm um interesse muito grande nessas questões profundas. Por que o céu é azul? Do que uma nuvem é feita? E por aí vai."

Segundo o físico brasileiro, a primeira coisa que um educador deveria fazer para melhorar a educação de ciência é aproveitar esse interesse. "O professor deveria levar as crianças para fora. Usar a natureza como sala de aula." Essa seria a menor maneira de alimentar a curiosidade científica dos jovens e incentivá-los a perseguir futuras carreiras na área. Infelizmente, não costuma ser muito praticada. "Eu me formei, cheguei ao vestibular, sem fazer uma experiência", disse Gleiser.

"A única que eu fiz, e eu tenho certeza que foi a que todo mundo aqui já fez, foi aquela de colocar o feijãozinho no algodão." Os risos na platéia não o deixaram mentir.

Gleiser não considera a falta de recursos financeiros o principal impedimento a esse tipo de prática de ensino. "Tem experiências básicas, que você pode fazer amarrando uma pedra num barbante", afirmou o cientista. "Você não precisa de muitos recursos para fazer isso."
Para atingir as pessoas que já saíram da escola e levar a elas as grandes discussões da ciência moderna, Gleiser atribui o papel maior à divulgação pela mídia.

VIDA EXTRATERRESTRE
Um dos temas que mais evocaram reações e perguntas da platéia foi a possibilidade da existência de vida extraterrestre -área de pesquisa pela qual Gleiser agora anda mais interessado. Ele divide a questão em duas vertentes.

"O Sol é uma estrela trivial. Não há nada especial sobre ele. E há na Via Láctea, a galáxia em que nós vivemos, cerca de 200 bilhões de estrelas. O nosso Universo, no horizonte que podemos observar, tem um raio de 14 bilhões de anos-luz. Só nesse horizonte estima-se que haja centenas de bilhões de galáxias. Então, se você faz as contas, é muito provável que exista vida em outro lugar", afirma o cientista.

"No entanto, eu sei que a pessoa que fez essa pergunta não está pensando nesse tipo de vida. A pergunta é: há vida inteligente fora da Terra?"

A essa questão, segundo Gleiser, ninguém ainda tem elementos suficientes para dar uma resposta precisa. Ele acredita que as evidências científicas hoje sugerem que os passos exigidos para o surgimento de espécies inteligentes e conscientes, como a espécie humana, sejam improváveis demais para que tenham se repetido em algum outro lugar.

O físico carioca encerrou o assunto lembrando uma piada saída dos quadrinhos, mais precisamente dos personagens Calvin e Haroldo. Ironizando a falta de sabedoria dos seres humanos, o personagem dizia que a maior evidência de que havia extraterrestres inteligentes em outras partes do Universo é que eles jamais tinham vindo nos visitar.

TRANSGÊNICOS
Gleiser alertou para os riscos de experimentos pouco controlados ou insuficientes, no que diz respeito à proliferação dos organismos geneticamente modificados.
"Houve um experimento um tanto controverso que mostrou que uma espécie de borboleta -a borboleta-monarca- morria muito mais ao ingerir pólen de milho transgênico do que quando ingeria pólen normal", afirmou.

Mas, com isso, ele não defende a interrupção das pesquisas na área. Muito ao contrário, acha que elas deviam ser incentivadas, justamente para dar o entendimento necessário sobre os riscos que essas criaturas oferecem. "Sempre que você introduz uma coisa diferente no ambiente, há um risco envolvido."

Gleiser reconheceu que, desgraça ambiental por desgraça ambiental, a introdução da agricultura, há milênios, pelos seres humanos já causou um impacto na natureza imensamente maior do que tudo que os transgênicos podem ou poderão causar no futuro previsível. "Mas nós temos de comer, fazer o quê, né?"

Pelo visto, o cientista não está tão confiante nas garantias dadas pelos órgãos governamentais de que os transgênicos são seguros. Quando perguntado, a seco, se ele comia transgênicos, respondeu com cautela: "Ainda não".

DEUS
Sobre uma possível incompatibilidade entre ciência religião, Gleiser, que já escreveu um livro sobre as visões religiosa e científica do apocalipse ("O Fim da Terra e do Céu"), diz: "Eu tenho vários amigos, colegas cientistas, que são religiosos e não vêem conflito algum entre a profissão e a fé deles. Eles vão à igreja, à mesquita, à sinagoga, no sábado, no domingo, e na segunda-feira estão lá, escrevendo as suas equações".

Com isso, se esquivou de dar uma resposta a respeito de sua crença pessoal. Mas não por muito tempo. Nem bem havia terminado de responder quando veio a inevitável pergunta. "Você acredita em Deus?"

Gleiser admitiu que não, considerando a busca dos segredos da natureza pela ciência uma busca suficientemente transcendente. Mas confessou já ter tido muitas oportunidades de celebrar as diferenças entre o racionalismo científicos e crenças de outras esferas do pensamento humano. "Eu já tive uma namorada astróloga", cita, reforçando que não há razão científica para acreditar que a posição dos astros tenha alguma influência sobre o destino e a personalidade dos seres humanos.

"Até seria legal se tivesse, se fôssemos assim tão importantes", disse. "Mas nós entendemos as principais forças que regem o mundo e nada leva a crer que o posicionamento dos planetas possa influenciar as pessoas."

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