domingo, 5 de junho de 2005

Das telas de Miró e Pollock às massas das partículas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Primeiro pensei que fosse um quadro do Miró. Ao lado achei que fosse um do Jackson Pollock. Apenas após ler a legenda entendi que eram imagens tiradas de um detector de partículas do Cern, o Centro Europeu de Física Nuclear (www.cern.ch), o maior laboratório do mundo dedicado ao estudo da física das partículas elementares. As imagens, claro, haviam sido estilizadas, recoloridas, tratadas com um intuito artístico. Acho pouco provável que Miró ou Pollock tivessem pensado sobre a física de partículas quando criaram as suas telas, se bem que me lembro de um depoimento de Miró dizendo que seus quadros eram universos alternativos, repletos de criaturas imaginárias. Talvez o ponto de encontro seja mesmo na estética dinâmica dos pintores e das partículas, cujas trajetórias são registradas sobre telas ou sobre câmaras de bolhas, de nuvens, ou outras formas de detecção. Ou talvez existam apenas algumas formas de se representar o dinamismo da realidade, e as partículas e os pintores usufruam delas.


Para isso que servem as experiências, não só para confirmar mas para abalar teorias


Hoje não escrevo sobre arquétipos dinâmicos, mas sobre o Cern e o que se espera encontrar por lá a partir de 2007. O objetivo de um detector de partículas deste porte -dezenas de quilômetros de túneis subterrâneos, sensores que custam bilhões de dólares- é revelar a natureza mais íntima da matéria, encontrar os chamados tijolos fundamentais que compõem tudo o que existe, as manifestações materiais de energia.

Essa corrida foi iniciada em 1897, quando o inglês J.J. Thomson encontrou a primeira partícula fundamental, o elétron. O quadro hoje está bem mais completo. Dividimos as partículas de matéria em dois tipos, os chamados léptons (que incluem o elétron) e os quarks, os componentes dos prótons e nêutrons. Fora elas, existem também as partículas responsáveis pelas forças (ou interações) entre as partículas de matéria. A mais conhecida é o fóton, a partícula da força eletromagnética, responsável pelas interações entre partículas eletricamente carregadas.

Mas o que então se espera encontrar no Cern em 2007? Esse deve ser o ano em que o novo acelerador, o Grande Colisor de Hádrons (LHC), deverá entrar em funcionamento, com uma energia 10 a 20 vezes maior do que a do detentor do recorde atual, o Fermilab, nos EUA. E, com aceleradores, quanto maior a energia, maior a massa das partículas que podem ser produzidas, uma conseqüência direta da famosa expressão E=mc2. Os cientistas não esperam necessariamente completar o quadro com o LHC, mas a idéia é chegar bem mais perto disso. Um dos grandes mistérios do modelo que agrupa as partículas de matéria e de força, chamado de Modelo Padrão, é a origem das massas dessas partículas. Por que um elétron tem massa 2.000 vezes menor do que um próton, e suas cargas elétricas são idênticas e opostas?

O modelo lança mão de uma partícula chamada bóson de Higgs, capaz de interagir com quase todas as outras partículas. E, dessa interação, nasce a massa das partículas, como se o Higgs fosse uma mochila que as partículas têm de carregar, umas mais cheias (interações mais fortes com o Higgs), outras menos. Só que, até agora, nada de Higgs. Se o LHC não encontrá-la, o mecanismo pelo qual as partículas ganham massa terá de ser revisitado. É para isso que servem as experiências em ciência, não só para confirmar mas para abalar teorias, desafiar a nossa criatividade. De quebra, novas imagens serão geradas em detectores. Se não forem iconoclastas, serão no mínimo belas.


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