terça-feira, 23 de março de 2010

Gleiser critica rumos da física


Cientista brasileiro chama de metafísica a busca de uma teoria única para as forças da natureza


Marcelo Gleiser




por José Paulo Lanyi.
Fotos de Paulo Vellozo





Todas as evidências experimentais mostram que é uma obstinação equivocada o caminho trilhado por grande parte dos físicos teóricos para unificar em uma ‘teoria total’ as quatro forças conhecidas até hoje pela ciência (eletromagnética, gravitacional, nuclear forte e nuclear fraca). Essa foi a posição apresentada pelo físico Marcelo Gleiser, na sexta-feira (19/03), a uma plateia de professores e estudantes do Instituto de Física Teórica (IFT), além de pesquisadores de outras instituições e interessados em geral.

Para Gleiser, o sonho de obter uma única equação para descrever essas quatro forças esbarra em um problema sem solução: é impossível obter todas as informações empíricas para justificar uma teoria unificada da natureza. "Chega uma hora em que a gente tem que entregar os pontos", afirmou o físico .

Na palestra, realizada no auditório do Instituto de Artes (IA), que integra com o IFT o câmpus da Barra Funda, Gleiser recorreu à história da ciência para justificar a sua visão sobre esse tema, que permeia o seu livro Criação Imperfeita - Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza (Editora Record, 2010, 366 págs.).

Professor de Física e Astronomia do Dartmouth College em Hanover (EUA), onde dirige um grupo de pesquisa em física teórica, Gleiser também é conhecido por seu trabalho como divulgador científico, em livros, artigos, programas de televisão, documentários e consultoria para o cinema.

A convite do diretor do IFT, Rogerio Rosenfeld, ele apresentou e debateu com o público o conteúdo do seu novo livro. Os dois pesquisadores são amigos desde 1985, época em que Rosenfeld fazia o seu doutorado na Universidade de Chicago (Illinois, EUA) e o segundo pesquisava para o seu pós-doutorado no Fermilab (Laboratório Nacional Fermi), próximo a Chicago.

Na entrevista a seguir, Gleiser conversa sobre os fatores metodológicos que o levaram a mudar de ideia em seu entendimento científico sobre uma "teoria total". Ele também faz críticas ao que classifica de dogma, na busca de setores da ciência pela predominância de uma teoria. "É uma coisa meio protegida, e se você não trabalha nisso [as supercordas], você não ganha bolsa."

Portal Unesp - Até que ponto o senhor consegue ter segurança para optar por um novo caminho na ciência?
Marcelo Gleiser - Não existem seguranças, existem percepções. Uma das coisas que eu falo é que a ciência não consegue chegar a uma verdade absoluta. Ela consegue chegar a narrativas cada vez mais completas da realidade. O que eu estou fazendo é uma análise essencialmente crítica, não da conclusão, mas da percepção, que é aberta na ciência, de que existe essa estrutura fundamental unificada por trás das coisas. A gente não tem nenhuma prova empírica de que isso seja verdade. E a física é uma ciência empírica. Então, depois de trinta, quarenta anos de essa percepção não ter sido provada, está na hora de mudar um pouco essa rota e começar a repensar qual é realmente a lição que a natureza está nos dando.

Portal Unesp - Nós estamos falando do contexto de descoberta. Nessa fase, hipóteses, teorias ou especulações também não seriam valiosas, mesmo que ainda não se tenha um resultado empírico?
Gleiser- Sem dúvida. Eu me lembro de que o meu pai me dizia: ‘Meu filho, um resultado negativo também é um resultado positivo’. Quer dizer, uma maneira de você testar uma teoria é provar que ela está errada, não só provar que ela está certa. O problema é que essas ideias em ciência não conseguem nem ser testadas. Estão além do método empírico, que é por definição como a ciência funciona. É um problema de metodologia absoluto, em que você não consegue nem provar que a sua teoria está certa ou que está errada. Então você passa a outra esfera, que para mim não pertence à física.

Portal Unesp - Na sua exposição, o senhor disse que, em relação a um modelo de ‘teoria total', não se tem conseguido fazer predições. O senhor parte do princípio de que não se consegue fazê-las porque ainda não se conseguiu testar essa teoria?
Gleiser - Não. Quando você desenvolve uma teoria, as teorias sempre fazem previsões. Por exemplo: se a minha teoria estiver certa, esse [um determinado] fenômeno vai ocorrer. Então você vai lá e busca por esse fenômeno com os seus instrumentos. O que está acontecendo é que algumas das teorias de unificação são tão abstratas, tão metafísicas que elas não conseguem nem fazer uma previsão que possa ser testada. Então a coisa fica muito difícil.


Patrulhamento

Portal Unesp - O senhor fala de dogma ao se referir à atitude de defensores da teoria das supercordas, o que parece ser uma reação sua a uma espécie de 'patrulhamento' no mundo da física em relação a quem pensa diferente. É isso que o senhor está dizendo?
Gleiser - É isso. Existe toda uma ‘sociologia’ em relação a isso. Teve um livro de um autor chamado Lee Smolin, que em português seria "O Problema com a Física" [The Trouble with Physics: The Rise of String Theory, The Fall of a Science, and What Comes Next]. Ele fala, vamos dizer, dessa ‘sociologia’. Se você não faz parte do clube, você está fora, ninguém aceita as suas ideias. É uma coisa meio protegida, e, se você não trabalha nisso, você não ganha bolsa, porque os comitês que decidem as bolsas têm um pessoal que trabalha só nisso. Muitos dos empregos acadêmicos nos anos 80 e 90 eram para quem trabalhava em supercordas. Ponto. Se você não mexesse com isso, era muito difícil você conseguir emprego. Você pode fazer uma analogia. Nessas teorias, você tem o papa, ou alguns papas, você tem um bando de cardeais e uma porção de padres. Então existe uma hierarquia ideológica que esses papas aí, como o Eddie Whitten e alguns outros, lançam as ideias fundamentais da teoria e todo mundo vai atrás.

Portal Unesp - Apesar de saber que os cientistas em geral não têm interesse em filosofia da ciência, cabe aqui uma pergunta: o senhor chegou a essa nova visão metodológica a partir da sua própria verificação das teorias e experiências ou também se baseou em fontes como Karl Popper [1902-1994], Thomas Kuhn [1922-1996] e Imre Lakatos [1922- 1974]?
Gleiser - Eu acho que é uma combinação das duas. Eu, modéstia à parte, sou um dos raros físicos que gostam, estudam e entendem um pouquinho de filosofia e de história da ciência. Não tem muitos, porque a maioria fica realmente muito focada na pesquisa, naquela área ali. Muito por esse meu trabalho de divulgação de ciência, mas mesmo antes disso, eu sempre me interessei pela parte da história da ciência. Li o Lakatos, li o Thomas Kuhn, li o Popper. Eu tenho uma formação talvez um pouco mais crítica nesse sentido, mais humanista da ciência. Então eu acho que essa minha mudança de posição não foi uma coisa abrupta, foi uma coisa gradual, uma maturação profissional que ocorreu com o casamento dessas duas coisas, o lado empírico e o lado mais filosófico.


Teorias não-testáveis

Portal Unesp - Em linguagem popperiana, pode-se dizer que uma das suas constatações é de que esse esforço em busca da simetria está levando a teorias que não são falseáveis?
Gleiser - Exatamente. Segundo Popper, você tem que provar que uma teoria está errada. E essas teorias [da 'totalidade'] você não consegue provar nunca que elas estão erradas, porque você pode sempre ajustar os parâmetros e falar: 'Ahá! Essa teoria você tem que testar em uma energia maior'.

Portal Unesp - O enunciado dessas teorias não seria falseável em vista do nível de abstração?
Gleiser - Algumas. Tem de tudo. Algumas são tão loucas que realmente estão fora do método.

Portal Unesp - Nessa teoria das supercordas, há alguma que seja testável?
Gleiser - Não. No momento, diretamente não. Só indiretamente. Se descobrirem partículas com certas propriedades, elas indicarão que talvez possa existir o que está na teoria das supercordas. Mas mesmo assim é uma evidência indireta.

Portal Unesp - Pela teoria de Thomas Kuhn, ciência é o que uma comunidade de especialistas diz o que a ciência é. Em relação a esse ‘grupo das supercordas’, a impressão, a partir do que o senhor está propondo, é de que seja uma comunidade que dita o que deve ser estudado pela ciência. Embora o senhor diga que, por carecer de uma base empírica, não seja ciência. [A visão desse grupo] é de uma espécie de ‘Thomas Kuhn ao contrário’. Seria isso?
Gleiser - É interessante essa idéia, é por aí... Mas, quer dizer, eles não acham que não é ciência. Eles acham que é ciência absoluta.

Portal Unesp - Em Thomas Kuhn, isso remete à teoria da incomensurabilidade ou incomunicabilidade entre os adeptos de diferentes paradigmas científicos. Mas, de qualquer forma, espera-se que o cientista faça uma verificação empírica, que faça medições.
Gleiser - A mensuração deles é a seguinte. Em um certo limite, as teorias de supercordas reproduzem a gravidade. Então, para eles isso já é o máximo. ‘Se a minha teoria reproduz a gravidade, ela prevê que a gravidade tem que existir’. Para eles, isso já é um sucesso da teoria. Mas você pode construir uma teoria completamente errada e que seja compatível com um fato concreto. A compatibilidade de uma teoria com um fato não significa que ela esteja certa.

Portal Unesp - Esses vinte ou trinta anos de insucessos da ciência na busca por justificar as 'teorias de unificação', conforme o seu ponto de vista, são mesmo suficientes para levarem o senhor a mudar de ideia em relação à possibilidade de sucesso dessas hipóteses?
Gleiser - Existe um obstáculo fundamental. A gente só conhece o mundo através dos nossos instrumentos. Tudo o que a gente conhece da realidade física é porque a gente mede: bactérias com os nossos microscópios, as galáxias distantes com os nossos telescópios... Esses instrumentos, mesmo que eles sejam muito poderosos, têm um limite na precisão. Você não pode ir além disso. Então existe toda uma fachada da realidade que é absolutamente invisível para nós. É impossível, a priori, construir uma teoria total da natureza porque você nunca vai ter a totalidade de informação da natureza para poder demonstrar se essa teoria está certa ou se está errada. Você jamais pode empiricamente demonstrar que essa é uma teoria final, porque, mais tarde, daqui a cinquenta anos, quando os seus instrumentos estiverem mais poderosos, você puder ver uma coisa de uma forma mais profunda, pode descobrir que tem um outro aspecto que você nem podia imaginar que existia. Então, a priori, essa ideia de totalidade do conhecimento é errada.

Um comentário:

  1. Adorei o teu blog. Muito bom, muito bom mesmo. Adicionei até nos meus Favoritos. Eu ficarei visitando teu blog sempre que puder.

    Abraço

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