domingo, 22 de março de 1998

Uma lição de humildade cósmica

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Uma das consequências mais profundas e, talvez, menos apreciadas da ciência é a sua capacidade de transformar nossa visão de mundo, ou mesmo nossas vidas. Quem poderia hoje em dia imaginar um mundo sem computadores, televisão por satélite ou antibióticos? Ou um Universo sem galáxias, pulsares, quasares ou buracos negros?

Parece incrível, mas até os anos 20 não era ainda claro para os astrônomos se a Via Láctea era a única galáxia do Universo ou se existiam outras como ela. Hoje, sabemos que existem centenas de bilhões de outras galáxias no Universo, cada uma delas com milhões a centenas de bilhões de estrelas. Mais fascinante, ou talvez chocante, foi a descoberta feita pelo astrônomo norte-americano Edwin Hubble, em 1929, de que o Universo está em expansão.

Em menos de 70 anos, passamos de um pequeno Universo, aconchegante e familiar, a um gigante em expansão, misterioso e indiferente à condição humana. Talvez a missão social dos cosmólogos do final do século 20 seja precisamente "apaziguar" esse gigante, explorando seus mistérios de modo a torná-lo mais familiar e menos atemorizante. Porque, sem dúvida, poucas coisas são mais aterrorizantes do que o desconhecido.

Apesar da nossa vastíssima ignorância, podemos pelo menos nos parabenizar por haver construído um modelo do Universo que explica, mesmo que de modo rudimentar, suas propriedades mais básicas, como o fato de ele estar em expansão. Esse modelo, conhecido como o do Big Bang, é um dos alicerces da nova física, que ainda está por vir.

Todo modelo tem suas limitações. A cosmologia moderna, baseada no modelo do Big Bang, não é uma exceção. Mas, em ciência, o fato de um modelo ser limitado não é necessariamente negativo. Pelo contrário, é justamente dessas limitações que surgem novas idéias, algumas delas capazes de suplantar toda uma visão de mundo. Em ciência, imperfeição é uma necessidade, mesmo que o objetivo seja sempre atingir a perfeição. Um dos aspectos mais importantes de um modelo não é o que ele pode explicar, mas o que ele não pode explicar. Suas limitações semearão o processo de descoberta que levará a modelos melhores, ou visões de mundo diferentes.

O grande sucesso do modelo do Big Bang é baseado em três descobertas. A primeira é que ele descreve a expansão do Universo, medida pela velocidade de recessão crescente das galáxias distantes da Via Láctea. A segunda é a previsão (confirmada) de que, se o Universo teve uma infância muito quente, ele deve hoje ser banhado por radiação com uma temperatura de -270C. A terceira é que o Universo é composto basicamente por 24% de hélio e o resto de hidrogênio. Os outros elementos são meros traços, se comparados com a abundância desses dois gases.

Mas o modelo não explica muitas coisas sobre o Universo observado. Por exemplo, não sabemos por que essa radiação de -270C tem uma temperatura tão homogênea. Ou seja, se medirmos a temperatura dessa radiação em pontos distantes no cosmos, obteremos o mesmo resultado com uma precisão da ordem de um centésimo de milésimo de grau. Para a temperatura ser a mesma, pontos diferentes do Universo têm de ter estado em contato causal, algo incompatível com o modelo do Big Bang. Por exemplo, para aquecermos uma panela de água a uma certa temperatura, o calor tem de se difundir, e isso toma tempo. Segundo o Big Bang, o Universo não teve tempo de homogeneizar sua temperatura.

O modelo do Big Bang exibe inúmeras outras limitações. Isso não significa que o modelo esteja errado, mas sim incompleto. A nossa missão é tentar aperfeiçoar esse modelo e encontrar soluções para suas limitações. E, quem sabe, encontraremos outras surpresas ou até novas visões de mundo durante nossas buscas.

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