domingo, 2 de março de 2003

A ciência e a guerra

.
Arquimedes, o grande inventor e matemático grego, ajudou ao seu patrono, o rei Hiero de Siracusa, a criar máquinas de guerra que detiveram vários avanços dos poderosos exércitos romanos. Diz-se até, em meio a relatos legendários de origem duvidosa, que ele queimou toda uma armada de navios usando espelhos côncavos gigantescos que focavam a luz do sol. Se não espelhos, ele certamente desenvolveu catapultas as mais variadas e outros instrumentos capazes de lançar bólidos a grandes distâncias. Isso, quase três séculos antes de Cristo. Já estava selado, desde então, o pacto entre a ciência e a guerra. Passados mais de dois mil anos, cá estamos nós, nos defrontando com a ameaça de novos horrores, nascidos dessa inevitável aliança.

Em seu livro "Armas, Germes e Aço", o americano Jared Diamond argumenta convincentemente que o expansionismo europeu se deu, principalmente, devido à detenção de tecnologias de guerra desconhecidas de outras culturas. Essas não envolviam apenas mosquetes e canhões, mas doenças contagiosas que dizimaram cidades e vilarejos inteiros antes da chegada dos canhões. As populações locais não tinham os anticorpos necessários para combatê-las.

Os mesmos princípios desenvolvidos por Arquimedes e por conquistadores europeus ainda estão em uso: se não são catapultas, são mísseis carregando explosivos de grande poder destrutivo, nucleares ou não, ou agentes biológicos e químicos contra os quais não temos defesa. Os países que detêm o controle político são aqueles com as armas mais efetivas, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Não por coincidência, estes países são também os que sustentam maior atividade de pesquisa científica. As exceções são Japão e Alemanha.

Essa aliança entre poder e ciência é inevitável. Como no mito de Prometeu, são os cientistas que roubam o fogo dos deuses, o conhecimento que pode nos tornar tão poderosos quanto eles. De fato, através da história, vários líderes políticos que detinham (e detêm) o controle de poderosas armas e exércitos tinham a sua visão um tanto embaçada pelo poder, se considerando às vezes como divindades, acima das deliberações do resto dos homens. Eles desfilavam (e desfilam) pelo planeta exibindo as suas armas a tiracolo, como troféus.

A ciência, muitas vezes, acaba sendo vista como a culpada disso tudo. "São os cientistas os responsáveis por essas armas, são eles os monstros, manipulados pelos políticos como marionetes", dizem os descontentes. É contra essa visão da ciência e dos cientistas que escrevo hoje. Em primeiro lugar, a ciência em si não cria ou destrói. Somos nós os criadores e destruidores. Somos nós que decidimos o que fazer com as nossas invenções. Ponho criação e destruição lado a lado pois essas duas facetas da ciência são inseparáveis. O que seria da vida moderna sem antibióticos, tecnologias digitais, aviões, carros e tanto mais?

Esquecemos também que somos nós que elegemos os políticos que fazem uso de armas de destruição. Claro, existem exceções, como no caso de ditadores que conquistam o poder à força. Saddam Hussein usou armas químicas sobre os curdos. Mussolini bombardeou populações civis na Etiópia. Hitler, Stálin, Mao, nem se fala. Exemplos não faltam. Mas a verdade é que em democracias também não. Truman autorizou o uso das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Ironicamente, são os americanos, cujos líderes políticos se consideram a polícia do mundo, os que detêm as armas de destruição mais poderosas. E que já as usaram. A decisão do uso ou não de armas de destruição não é tomada por cientistas, mas por políticos. E o ato em si cai nas mãos dos militares.

Esses argumentos não exoneram os cientistas de sua cumplicidade histórica. Seu dever civil é, a meu ver, melhorar as condições de vida da humanidade. Desse pacto inevitavelmente nascem novas tecnologias e novas armas. Não é com a ciência que devemos nos preocupar, mas com a imaturidade do homem, cientista ou não, que não sabe como lidar com o poder que vem roubando dos deuses.

Nenhum comentário:

Postar um comentário