domingo, 29 de maio de 2005

Células-tronco e a medicina do futuro

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

"Galileu e Copérnico estavam corretos: a Terra é mesmo redonda e gira em torno do Sol. Eu acredito que o intelecto que nos foi dado por Deus deve ser usado para distinguir entre o dogmatismo que nos aprisiona e a prática ética da ciência, que é o que devemos apoiar aqui hoje." Essas foram as palavras de um deputado do Partido Republicano, Christopher Shays, durante as discussões que precederam um voto do Congresso dos EUA sobre o apoio federal à pesquisa com células-tronco de embriões humanos. Para a surpresa de muitos, incluindo a liderança conservadora do Partido Republicano e o presidente Bush, a medida foi aprovada por 238 votos a favor e 194 contra. O Senado já mostrou o seu apoio. Bush, por sua vez, ameaça usar o seu poder de veto.

A política científica norte-americana está passando por uma redefinição, baseada nas políticas evangélicas de Bush e seu gabinete. As verbas da Fundação Nacional de Ciência foram reduzidas, as da Nasa redirecionadas, em grande parte, para programas de pequeno valor científico e grande valor propagandístico, como a exploração humana de Marte. As políticas de preservação ambiental do governo Clinton estão sendo desmanteladas, como na recente liberação de uma reserva natural no Alasca para a exploração de petróleo. O caso das células-tronco é importante por ser um claro exemplo de como decisões políticas que misturam ciência com dogmatismo religioso podem prejudicar tanto os cientistas quanto a população como um todo.

Misturar ciência e dogmatismo prejudica a todos

As células-tronco são extraídas de embriões humanos com aproximadamente cem células. O interesse nelas vem de sua capacidade de gerar células de praticamente todos os órgãos e tecidos do organismo humano. O potencial de terapias usando células-tronco é enorme, definindo toda uma nova área da medicina, o que poderia tratar doenças que causam a degeneração de tecidos com a reposição de células saudáveis. Doença de Parkinson, diabetes e distrofia muscular são algumas das várias moléstias, a afligir centenas de milhões de pessoas no mundo, que podem vir a ser tratadas.

A oposição afirma que retirar as células-tronco dos embriões equivale a assassiná-los, que a ciência não deve destruir vidas. Essa retórica é típica de uma ideologia religiosa radical. Na prática, a situação é muito diferente. A proposta dos cientistas é utilizar os embriões descartados pelas clínicas de fertilização artificial. Caso não fossem utilizados, seriam congelados indefinidamente ou simplesmente destruídos. Portanto, o que se propõe é justamente o uso dos embriões para salvar vidas, evitando assim que sejam destruídos inutilmente. Seguindo a posição de Bush, clínicas de fertilidade deveriam ser também proibidas, já que inúmeros óvulos são inseminados e embriões gerados para que apenas um ou dois venham a formar um feto.
Enquanto isso, cientistas coreanos anunciaram na semana passada que conseguiram desenvolver células-tronco a partir de amostras vindas de doentes com uma eficiência que só se acreditava possível daqui a décadas. As células-tronco são obtidas de embriões clonados das células dos pacientes, usando técnica semelhante à clonagem de animais. O objetivo não é copiar humanos, mas retirar as células-tronco dos embriões para tratar os pacientes. O papel da ciência é aliviar o sofrimento material do homem. É inútil tentar bloquear o seu progresso com uma ideologia religiosa retrógrada. O que não for feito nos EUA ou no Brasil será feito em outro lugar.

Um comentário: